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Lúcifer e a conspiração dos arcanjos – Parte 11

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– Se alguém lhe perguntar se você é consubstancialista aqui na parte sul da cidade, diga que é. Na parte norte, diga que não é. – Recomendou o necromante em tom de preocupação.

– Consu… o quê?

– Consubstancialista. Há uma discussão sangrenta sobre a natureza do salvador, o filho de Deus. Aquele que por algum motivo ignorado veio redimir nossos pecados. Aqui na asa sul, as pessoas são consubstancialistas, pois acreditam que a essência do filho de Deus é a mesma de seu pai, o Homem Invisível. Na asa norte, é dito que pai e filho são feitos de substâncias diferentes.

– Substância? Que substância? Sério que eles discutem isso?

– Eles se matam por causa disso.

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Esmeralda ficou perplexa. Que tipo de substância seria? Seria herança genética? Espiritual?

– Mas alguém viu Deus e seu filho? Como podem discutir isso se o salvador deixou a Terra há milhares de anos.

– Segundo a Igreja, “na unidade da Divindade há três pessoas, o Pai, o Filho e o Espírito Santo, sendo que essas três pessoas, se é que se pode chamar assim, são distintas uma das outras, mas não existem três deuses, apenas um”. – E o necromante olhou com os olhos esbugalhados para Esmeralda, um pouco envergonhado. De fato, brigava-se por nada. – Foram escritos muitos livros sobre isso. – Concluiu o rapaz.

Esmeralda ficou horrorizada. E ela pensando na liberdade sexual das mulheres, dos homossexuais, na paternidade responsável e no combate às drogas e ao alcoolismo. Esmeralda não sabia que as pessoas dos grandes centros urbanos travavam grandes discussões e se matavam por questões tão inúteis e sem base fática alguma. Ficou com a impressão de que a trindade existia apenas para que as pessoas continuassem confusas e com complexo de inferioridade. Mas o que esperar de gente que comemorava quando ateus, homossexuais, pagãos e descrentes eram mortos por religiosos fanáticos em terras distantes ou quando cidades como Sodoma e Gomorra eram extirpadas da face da Terra?

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Feitas essas considerações por Lúcifer, no início de uma grande rua íngreme, onde ficavam inúmeros comerciantes, a maioria deles já guardando suas mercadorias, viram um que vendia roupas. Foram até ele. Chegando ao comerciante, perceberam que ele manifestava muito medo e reprovava o vestuário dos visitantes. Também perceberam que muitos os olhavam furtivamente e os evitavam. O próprio comerciante evitava olhar diretamente para os estranhos, revelando-se uma pessoa assustada e arredia. Falava para dentro e observava constantemente o movimento da rua. Talvez esse comportamento fosse causado pelas roupas dos clientes potenciais ou porque o vendedor notara que eram forasteiros alheios ao que acontecia naquela cidade. Sabia que provavelmente seriam mortos. Entre o medo de ser punido por se relacionar, ainda que comercialmente, com os viajantes e a necessidade de sobreviver, o nativo se limitou a dizer o preço das peças de roupas (duas moedas de bronze cada), que eram todas iguais – túnicas marrons que cobriam todo o corpo. Além do material ser de péssima qualidade, a roupa era feia e mal confeccionada. Isso não agradou a Esmeralda, mas era melhor do que uma roupa transparente e a roupa de um necromante dentro de uma cidade dominada por aquela seita conservadora e violenta chamada Igreja. Com efeito, os nativos não tolerariam uma mulher que se vestia como uma prostituta e que olhava diretamente para os olhos dos homens e também não tolerariam um necromante ali, uma criatura ateia por natureza e que não se vinculava a ninguém, além, é claro, de manipular mortos e de poder retirar a alma das pessoas. E de todo modo, em Amelot fazia muito frio, sendo este outro motivo para a compra das túnicas.

Aquelas roupas antiquadas e conservadoras era o padrão de vestimenta da cidade. Um padrão medieval, de um povo temente ao sobrenatural, longe do Iluminismo e da razão, totalmente sujeito ao que havia de mais retrógrado no mundo terreno. A maioria das pessoas que os forasteiros viam se vestia com pesados casacos escuros, principalmente as poucas mulheres que perambulavam sempre acompanhadas de homens ou de outras mulheres.

O necromante, que só tinha moedas de ouro, trinta aproximadamente, entregou duas ao vendedor, o que lhe rendeu uma bela cotovelada de Esmeralda, pois evidentemente aquelas roupas não valiam nem meia moeda de bronze. O comerciante estendeu a mão para pegar as moedas e teve um sobressalto quando viu as duas moedas de ouro. Colocou-as rapidamente no bolso e olhou para ambos os lados, de forma a certificar-se de que ninguém viu a transação, pois temia ser roubado ou ter que pagar imposto extraordinário para a Igreja. Finalmente, comovido pelo dinheiro, o vendedor olhou diretamente para o necromante. Lúcifer percebeu que o homem estava curioso e, então, animou-se, dizendo:

– Preciso de informações. Procuro uma moça chamada Klepoth.

O comerciante, então, ficou ainda mais assustado, como se aquele nome fosse proibido. Passou a guardar as mercadorias de forma célere, olhando freneticamente para os lados. Indicando que nada falaria sobre o assunto.

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– Nós temos mais moedas de ouro. – Disse Esmeralda friamente.

– Silêncio. – Manifestou-se o comerciante, estranhando o fato de que uma mulher lhe dirigia a palavra. – Fale baixo. Há muitos ladrões e inquisidores por aqui. Ajudem-me a guardar as roupas e venham comigo. – O comerciante temia os julgamentos da Inquisição, pois quem acusava também julgava e a lei aplicável era a divina, escrita e interpretada por homens. Não havia como vencer a Igreja em seu próprio tribunal.

– Atchim!!!

Após alguns minutos de intenso trabalho e tendo os compradores vestido suas novas roupas, os três seguiram por uma viela fora da avenida principal. A via estava quase vazia. Só havia um mendigo deitado no chão, recoberto por alguns panos grosseiros, acompanhados de ratos e do cheiro insuportável de urina. Não era possível dizer se estava apenas dormindo ou se havia morrido. Estava imóvel.

– Então, diga. Onde podemos encontrar Klepoth? – Perguntou Esmeralda impaciente.

O comerciante, acendendo sua tocha, pois o breu da noite ganhava velocidade e impossibilitava o uso do sentido da visão, disse, olhando para o necromante:

– Klepoth, a depravada… – Esse apelido deixou Esmeralda mais irritada, mas ela nada falou. Para a moça era imprescindível saber onde estava sua mãe e nem o fato de ser ignorada pelo machismo alheio a impediria de ouvir o que o homem tinha a dizer. – Ela mora na margem da cidade, ao pé da montanha. Vocês precisam seguir na direção do topo da montanha. Continuem subindo, atravessem o centro da cidade e continuem em frente. Mas há um porém…

– Qual? – Perguntou o necromante.

O comerciante parou, olhou para um lado, olhou para o outro, estufou o peito e olhou de soslaio para o saco de dinheiro do necromante. Lúcifer, então, sacou mais duas moedas de ouro.

– Continue. – Ordenou.

– O regente da cidade está em guerra contra Klepoth, a depravada. Ela é uma bruxa muito poderosa e cruel. Já dizimou dezenas dos melhores homens do reino. Eles nunca mais voltaram e de lá ela não sai. Dizem que todos que se aproximam da casamata de Klepoth, a depravada, ou morrem ou viram escravos dela. Fiquei sabendo que Elisa Báthory, mulher do regente da cidade, irá caçá-la pessoalmente e que se valerá da Inquisição para isso. Ela está dizendo que terá apoio do próprio Deus. A Inquisição já está arregimentando um grande contingente de guerreiros para acabar com a bruxa. Segundo Elisa, Amelot contará com a ajuda de entidades celestiais. Ela não quer que Klepoth se junte às forças do mal.

– Vão queimá-la. – Concluiu Lúcifer.

– Então vamos. – Determinou Esmeralda.

– Vocês não conseguirão andar pela cidade à noite sem uma tocha. A iluminação pública é péssima.

De fato, os postes ostentavam pequenas chamas em seu cume que durariam apenas algumas horas.

– Quanto custa esta tocha que você carrega?

– Três moedas de ouro. – Respondeu convicto.

O necromante, contrariado, sacou mais três moedas de ouro. Esmeralda pensou alto:

– Aproveitador.

– É a lei da oferta e da procura, o que fazer? – Respondeu o vendedor soturno. E antes de desaparecer no breu da noite, emendou irrefletidamente: – Vá com Deus.

Partiram portando a tocha. Dirigiam-se para onde estavam os arcanjos, na direção oposta à residência de Klepoth, pois pretendiam ir até a mãe de Esmeralda voando, quando foram interceptados por dois guardas em sua montaria:

– Ei, vocês dois, o que fazem aqui a essa hora?

– Estamos apenas de passagem, senhor. – Respondeu o necromante com sua voz abafada, tentando transmitir o máximo de tranquilidade possível.

– Tirem o capuz. – Determinou outro soldado.

O necromante baixou o capuz e nada chamou a atenção dos guardas, até porque, àquela hora da noite, era comum que pessoas com expressões cansadas perambulassem por ali e acolá.

– Ei, idiota, agora é sua vez. – Ordenou o outro guarda batendo na cabeça de Esmeralda com a bainha da espada. Ela caiu no chão. Nervosa, levantou-se e baixou o capuz. Os guardas olharam surpresos para ela. Conheciam ela:

– Você?! – Gritou um deles. – Uma bruxa! Purificação!

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Imediatamente, Esmeralda, tomada pela fúria, usou seu poder. Altas ondas sonoras saíram de sua boca, fazendo com que os guardas fossem derrubados dos cavalos. A tocha de Lúcifer se apagou e os animais saíram correndo sem direção – um deles inclusive bateu contra um poste de iluminação, derrubando-o e fazendo com que as chamas que iluminavam parte da rua caíssem sobre uma casa feita de madeira. Um incêndio logo começou. Posteriormente, como vieram a saber poucos momentos depois, tomou dimensões descomunais. O fogo se alastrou rapidamente entre as construções de madeira que eram próximas umas às outras. Muitas pessoas perderam suas casas e ficaram na rua, no meio da noite gelada.

Lúcifer e Esmeralda correram ladeira abaixo. Durante a corrida, Lúcifer perguntou ofegante:

– Você os conhece? Disse que nunca veio para cá.

– Eu não os conheço. – Respondeu a bela. – Nunca vim para Amelot.

– Mas… – Tentou argumentar o necromante

– Não sei. – Resfolegou. – Continue a correr, Formol. Quero chegar logo até os arcanjos. Voando chegaremos mais rápido à minha mãe.

– Atchim!!!!

Mas os heróis não precisaram chegar até os arcanjos. Estes voaram imediatamente para encontrá-los em razão do crescente incêndio, gritaria e promessas de morte. Os celestiais não podiam perder Lúcifer. Em que pese ser noite, os arcanjos tinham excelente visão, semelhante à de uma águia, que não sofria tanto os efeitos da noite, não encontrando muita dificuldade em localizar os companheiros. O resgate foi rápido e eficaz, todavia os arcanjos tiveram que se expor e foram vistos por alguns cidadãos. A celeuma em torno daquela visão de entidades celestiais foi grande e se tornaria maior com o tempo. Com certeza a localização deles chegaria ao conhecimento dos inimigos, o que abria a possibilidade de serem rastreados, encontrados e punidos por Lúcifer ou Metatron.

– Vós estais bem? – Perguntou preocupado Samuel.

– Sim! – Respondeu Esmeralda. – Tire-nos daqui. A casa da minha mãe fica do outro lado da cidade, ao pé da montanha.

O necromante, sem fôlego, só deu um “ok”. Estava fora de forma.

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E assim foram. Esmeralda com Samuel e Lúcifer com Gabriel. Dessa vez, em função dos grossos mantos marrons, a viagem foi menos traumática para o necromante. No entanto, durante o curto trajeto, Samuel, Esmeralda e Formol tiveram que ouvir as reclamações de Gabriel.

Nós fomos vistos! Deveríamos ter ficado escondidos esperando os sinais. Aquela depravada em nada nos ajudará. Agora seremos localizados.

Gabriel, por favor, acalme-se. – Suplicou Samuel.

Acabaremos como Uriel e Rafael! – Vaticinou Gabriel irritado. – Entendo que devemos voltar lá e acabar com as ovelhas antes que Lúcifer e Metatron saibam do ocorrido. – Gabriel entendia que toda a cidade e seus habitantes deveriam ser destruídos.

Não Gabriel! São inocentes! Eles não têm culpa.

Em breve, as ovelhas vão morrer mesmo. – Disse Gabriel se referindo aos seres humanos. Os celestiais se referiam aos seres humanos como ovelhas.

 

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– Nojento. – Comentou Esmeralda indignada.

Em questão de minutos, contornaram parte da montanha e chegaram ao pé dela. Pousaram. Gabriel desistiu de destruir Amelot, pois Samuel o lembrou de que isso iria chamar atenção de Lúcifer e Metatron imediatamente e de que ninguém no Céu ou no Inferno dava importância para a crença e relatos dos seres humanos. Com efeito, nenhuma entidade celestial ou infernal dava bola para os terráqueos ou para suas preces. Aliás, o Paraíso e o Inferno achavam ridículo o antropocentrismo dos humanos, crentes de que uma entidade cósmica, para eles onisciente, onipotente e onipresente, fosse perder tempo com meros mortais, habitantes de um minúsculo planeta de uma galáxia qualquer, ensinando e exigindo, para salvá-los (sabe-se lá do quê), que nela acreditassem. Eles não conheciam ou se recusavam a entender o princípio da mediocridade. De fato, humanos, criaturas que não tinham nada de especial, a não ser a racionalidade, que preguiçosa ou teimosamente não usavam, só serviam como fonte de almas para alimentação.

Gabriel deixou o pé da montanha e voou alto. Das alturas, notou que havia uma grande fazenda com uma mansão no centro, rodeada por desfiladeiros e penhascos. O terreno acidentado era uma boa defesa natural. Havia iluminação na casa. Em uma das inúmeras janelas, uma luz vermelha trêmula podia ser notada. Provavelmente, existiam muitas tochas acessas no aposento.

Gabriel voltou ao pé da montanha e logo todos partiram para a fazenda. Voando, transpuseram as cercas farpadas do sítio e aterrissaram na frente da porta principal. Samuel e Gabriel, cujas percepções eram mais evoluídas, notaram que inúmeros seres se esgueiravam pelo local.

Provavelmente a mansão era defendida por feras. Estavam atentos, com as mãos na bainha das espadas “Uma mensagem para ti” e “Força interior”. Apesar da escuridão, perceberam que a fazenda era bem cuidada e que tinha um grande jardim com vegetação tipicamente temperada. Era um recanto bem preservado e bem tratado. A grama era muito verde, não obstante o frio.

Frente à porta, Esmeralda se antecipou. Estava ansiosa. Tinha quase certeza de que aquele era o lugar em que sua mãe morava, pois era um lugar repleto de bom gosto. Bateu na porta.

Samuel, Gabriel e Lúcifer, que sentiu a presença de inúmeros cadáveres enterrados recentemente no jardim, estavam preocupados com o estranho ambiente. A porta se abriu. A primeira visão de Esmeralda foi a de um homem meio fora de forma, de meia idade e seminu.

– Pois não? – Ele disse estranhando a visita, pois ninguém os visitava.

Porém, no momento seguinte, ao olhar para o rosto de Esmeralda, ele exasperou-se.

– Oh, madame!? Eu… eu acabei de deixar a senhora no sa…

– Ela quer ver Klepoth, a deprav… – Lúcifer interrompeu a própria fala. Não queria que Esmeralda ficasse nervosa, sob pena de levar uns tabefes. – Ela é filha de Klepoth e quer ver a mãe. – Complementou singelo e objetivo.

O mordomo, exasperado, pediu que aguardassem, fechou a porta e, pelo que se pode notar, correu em direção ao interior da casa. Alguns segundos depois, ouviu-se um rebuliço dentro da casa e uma voz feminina podia ser ouvida, ainda que longínqua e abafada, dando inúmeras ordens, mandos e desmandos atabalhoadamente. Logo a porta se abriu novamente e uma mulher igual a Esmeralda apareceu.

FILHA!!!! – Após a exclamação, ela se calou e fez cara de estranhamento, arrematando. – Como você está acabada. – E então abraçou Esmeralda.

Realmente Esmeralda era idêntica à Klepoth. Por isso, Gabriel disse o que disse horas atrás, ao cabo do resgate e por isso o guarda de Amelot se exasperou quando o capuz da moça baixou. Naquele momento, algumas palavras de Lilith, no inferno, fizeram sentido. Apesar da simetria e apesar de Esmeralda ainda ser a mulher mais bela do mundo, ela estava cansada, com grandes olheiras, com os cabelos bagunçados e muito faminta. De fato, naquele dia havia acontecido muita coisa e os últimos dias em que permaneceu no Inferno foram extremamente estressantes. Precisava dormir um pouco.

Enquanto mãe e filha se abraçavam, notaram os convidados que a casa era povoada por homens, todos seminus e comandados por Klepoth. Eram seus escravos.

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Após abraçar a filha, falar que ela estava acabada, dar novamente inúmeras ordens a seus escravos, inclusive ameaçando usar sua chibata caso demorassem para cumpri-las, notou que Esmeralda não estava só.

Lúcifer entrou logo depois de Esmeralda, e logo foi cortejado pela anfitriã, que o achou bonitinho, embora magro e abatido. O coitado não devia comer há dias. Estava um trapo, mas nada que uma boa comida não resolvesse. Ao notar a entrada dos arcanjos em sua casa, no entanto, o coração de Klepoth disparou.

Filha, quem são esses … arcanjos?

– Eles… – A moça estava prestes a explicar a situação, mas o pavor da mãe a interrompeu.

Eu não fiz nada, minha filha. – Disse exasperada. – Estou apenas cumprindo minha pena. Depois que fui expulsa do Paraíso não mais incomodei os serafins. Mande-os embora, por favor.

Samuel foi o primeiro arcanjo a entrar e, ao ouvir as considerações de Klepoth, acalmou-a:

Viemos em paz, madame. – Afirmou imponente o arcanjo. – Sou o arcanjo Samuel e este é Gabriel. Buscamos apenas algumas informações sobre Lúcifer e agradecê-la pela contribuição dada à nossa causa, ainda que tenha sido involuntária. – Arrematou Samuel.

Foi amor à primeira vista. Klepoth, que desde longa data vivia na Terra, há muito tempo não via uma criatura celestial do sexo masculino. Sentia falta deles. Estava cansada de humanos. Eles eram tão frágeis, substituíveis, breves, incompetentes e desprovidos de qualquer poder e conhecimento científico rigoroso. Não conseguia ter com eles uma conversa intrigante, nem obter novos conhecimentos.

Outrossim, Samuel não era qualquer entidade celestial, era um arcanjo. Achou-o muito bonito. Um arcanjo alto, forte e loiro, com voz robusta e penetrante. Embora ele fosse apenas da terceira hierarquia celestial, Klepoth nunca havia visto tantos músculos e compleição mais perfeita do que aquela. As asas dele deveriam ter no mínimo seis metros de envergadura! Que asas, hein? Imediatamente, Klepoth se sentiu envergonhada de seus escravos. O que ele iria pensar daquilo? Manter dezenas de homens como escravos…

Ela sentiu que precisava acabar ou pelo menos esconder aquilo imediatamente de seus convidados. Ordenou estressada e afoita que seus serviçais arrumassem os quartos dos visitantes, que se vestissem adequadamente e que preparassem o jantar para os convidados o mais rápido possível.

Rapidamente, inúmeros puffs, chicotes, afrodisíacos e instrumentos estranhos sumiram da sala, dos quartos e de todos os cômodos da casa. Em um curto espaço de tempo, aqueles homens seminus estavam trajados convenientemente.

Filha querida, coma um pouco. – Falou tentando esconder o constrangimento. Indicou o sofá para que os visitantes se sentassem. – Temos carne de texugo e molho de morcego. Sintam-se em casa. Ai, espero que gostem. Meus escrav…, quer dizer, meus colaboradores tiveram tantos problemas para encontrar estes ingredientes.

Para o necromante, a refeição foi breve e longa. Breve, porque engoliu a comida, apesar do nojo. Dessa forma, ele não precisaria sentir o gosto dela. E longa porque a angústia que sentira, oriunda daquela refeição bizarra, não sairia de suas memórias tão cedo. Certamente, teria problemas digestivos.

Antes de se recolherem, Klepoth combinou com os visitantes que pela manhã conversariam profundamente sobre o que fosse necessário e, em particular, pediu para que Esmeralda lhe contasse tudo o que havia acontecido, naquela noite mesmo. Samuel assentiu, pois entendia os sentimentos da mãe e da filha. Klepoth queria tanto conversar em particular com sua filha e queria saber como ela viveu os últimos anos e também como estava seu pai. Também queria pedir desculpas pelo abandono e explicar suas motivações. Estava muito desatualizada acerca dos acontecimentos. Sabia apenas que os demônios mais uma vez estavam planejando o retorno de Lúcifer, porque há algumas semanas tinha recebido um convite para participar de uma empreitada contra o Paraíso. Mas como não deram detalhes, como já tinham tentado libertar Lúcifer outras vezes e como os odiava, deu de ombros e tocou a vida. Não queria se meter com Lúcifer ou Metatron.

Após a ceia e de conversas preliminares, onde Klepoth tomou ciência, por cima, do que estava ocorrendo, os convidados, com exceção de Esmeralda, foram se deitar. Aquele foi um dia longo para todos. Já na cama, os hóspedes sentiram o cansaço e o desgaste que a simples permanência no Inferno causava. O arcanjo Samuel, no entanto, ficou de prontidão. Ele se instalou sobre o telhado da moradia de Klepoth e passou a noite alerta, como se esperasse algum sinal. Tudo dependeria de uma atitude rápida e cirúrgica dos conspiradores, sob pena de morte de milhões de anjos, demônios e seres vivos da Terra.

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O necromante, em seu leito, ainda sentia um leve cheiro de enxofre no ar. Aquele maldito fedor não lhe deixaria tão cedo.

Deixadas a sós na sala, mãe e filha conversaram por horas:

Perdoe-me filha por ter deixado você sem mãe por tanto tempo. Eu tive minhas razões

Esmeralda continuou em silêncio. Estava com os olhos marejados. Finalmente encontrara sua mãe e nada do que ela dissesse estragaria aquele momento mágico. Deram-se as mãos e se olharam fixamente.

Sabe, filha, sou uma virtude caída, um demônio.

– Mas… – Hesitou Esmeralda curiosa.

Eu sei que é vergonhoso e que demônios são caçados e mortos, mas eu sou boa, sempre fui. Não sou má.

– Não mãe, não tenho vergonha, é que…

Sobre os homens da casa, não é o que

– Não, não é isso.

– Não entendo filha, por que hesita?

Você não parece um demônio. Você é linda.

Ah! – Exclamou aliviada Klepoth. – Entendi, vou te explicar. E eu achando que tu irias defender esses imbecis da casa. São imprestáveis. – Disse a orgulhosa virtude.

Esmeralda sorriu constrangida. Percebeu que sua mãe não era nada objetiva e divagava demais. Totalmente disfuncional. Não era ela objetiva e precisa como Lúcifer. Talvez fosse a emoção, mas não parecia. Seria ela mesma detentora de grande conhecimento?

Sabe, fui uma das primeiras a ser expulsa do Céu por Metatron, antes da maldição ser lançada sobre os seguidores de Lúcifer. Não fui infectada. – Uma lágrima correu de seus olhos e a respiração ficou carregada. Klepoth abraçou a filha. Depois de alguns minutos de silêncio e muitas lágrimas, o demônio continuou:

CONTINUA….

 

Leiam A Nova Teogonia Livro I e Livro II, de minha autoria.

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