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Lúcifer e a conspiração dos arcanjos – Parte 14

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Vide parte 13

 

DE VOLTA À MANSÃO DE KLEPOTH

 

Passados alguns minutos, Klepoth se recuperou do estresse que a reflexão sobre sua vida causou. Viu que na sala se encontravam Samuel e Gabriel. O primeiro preocupado e o segundo enojado, pois ouviu parte do relato do demônio. Samuel a tomou pelo braço e a abraçou. Tentou acalmá-la. Gabriel, impaciente, balbuciava algumas palavras incompreensíveis, quando de repente um barulho estrondoso se fez ouvir. A porta do cômodo em que estavam Klepoth e seus convidados havia cedido e inúmeros homens furiosos, armados de vários instrumentos de cozinha e de cultivo de plantas, entraram gritando e derrubando tudo. O necromante lembrou do aviso dado por aqueles homens. Aproveitaram que Klepoth e os convidados estavam encurralados e distraídos naquele cômodo. Os arcanjos rapidamente tomaram a frente de Klepoth, Esmeralda e Lúcifer. Ambos eram muito ágeis. Desembainharam “Uma mensagem para ti” e “Força interior” rapidamente. Estavam prontos para qualquer ataque. A atitude e a agilidade dos arcanjos intimidaram os homens que vinham na frente, mas eram muito os agressores. Os de trás empurravam os da frente de forma que era impossível a estes fugirem de um embate com os arcanjos. Samuel gritou para que parassem e que a circunstância poderia ser resolvida pelo diálogo, todavia a massa de homens insanos se avolumava. O choque era inevitável.

 

Não os mate, Gabriel! – Gritou Samuel enquanto derrubava dois oponentes se valendo da bainha e da empunhadura da “Força interior”, tomando cuidado para não matá-los.

 

O necromante invocou sua esfera de energia e estava pronto para atacar qualquer homem que conseguisse transpor a linha feita pelos arcanjos que combatiam ferozmente os homens. Todavia, Lúcifer percebeu que Klepoth recitava versos estranhos. Logo percebeu que a virtude estava invocando algum tipo de feitiçaria. Repentinamente, atravessando a parede lateral surgiu um grande mamute de olhos verdes. Pela pequena janela, na parede do lado oposto da entrada triunfal do mamute, uma pantera negra com olhos verdes surgiu, estilhaçando os vidros. Ambos animais eram duas das inúmeras feras percebidas pelos arcanjos na noite anterior. Os poucos homens que restaram do confronto com os arcanjos, espantados, voltaram pela porta de onde tinham entrado. Houve um grande pisoteamento na fuga. Todavia, os insurgentes foram surpreendidos por mais dois animais ferozes: um cavalo monstruoso, negro, cor de ébano e de olhos verdes brilhantes, e um urso gigantesco também de olhos verdes.

 

necromancer

 

Samuel, desesperado, gritou:

 

Klepoth, por favor, não os mate. Pare!

 

A virtude hesitou. Odiava aqueles seus escravos, pois eles eram assassinos, porquanto não faziam nada direito e porque, para sua vergonha, tinham colocado as vidas de suas únicas visitas agradáveis nos últimos séculos em risco. Mas, por outro lado, olhou diretamente para a face resoluta de Samuel e sentiu toda sua força de espírito. Resolveu recuar. Recitou um breve encantamento e as feras recuaram imediatamente, deixando que os poucos homens que sobraram em pé fugissem.

 

Saiam da minha casa, marginais antes que eu mude de ideia e dê cabo de suas vidas miseráveis. E levem seus amigos também. – Referia-se aos homens caídos e desmaiados ou em razão do embate com os arcanjos ou em função do ataque repentino do mamute que jogou pedras e pó para todos os lados na sua entrada arrebatadora.

 

mamute

 

O arcanjo Samuel, que estava incomodado pelo fato de ser acusado de não se importar com o destino dos seres humanos, agradeceu a bondade e ajudou Klepoth a se levantar. Havia decidido respeitar a vida humana também e considerá-la tão relevante como sua própria vida, pois sua moral foi retirada de inúmeras experiências e ensinamentos ao longo da vida, inclusive daquela crítica, de que não se importava com os humanos, que tanto o incomodou.

 

A dona da fazenda sorriu e fitou sincera os olhos do celestial, cada vez mais o admirava. Tudo que deixou de amar nos últimos séculos, estava amando naqueles momentos. Esmeralda teve esperança, pois percebeu que sua mãe talvez tivesse solução. Gabriel, por seu turno, fungou insatisfeito. O arcanjo amargurado sentia que a aproximação entre Samuel e Klepoth seria mais um sério problema para a causa pela qual lutava.

 

Desculpe-me, Samuel, eu não queria… eu não queria matá-los, mas fiquei furiosa e… – Disse confusa.

 

Já passou querida, eles se foram. – Abraçou-a. Klepoth fez o mesmo. Não queria mais soltar o arcanjo e o apertou entre seus braços de forma firme. Ficaram ali por algum tempo.

 

NO INFERNO (II)

 

Nas masmorras do Inferno, Asmodeus entrou na cela em que estava circunscrita uma figura celestial moribunda, banhada em seu próprio sangue azul, seco e enegrecido, fedendo à morte, com marcas profundas de dentes e lanças em brasa. Hematomas cobriam todo o corpo. Estava sem uma asa e com a outra quebrada, praticamente sem penas. Aquela criatura linchada, espancada e agonizante, acorrentada e pendurada pelos pulsos, com roupas rasgadas, sujas de barro, enxofre e sangue, era um arcanjo, era Uriel. Ele ainda estava vivo, o que era admirável.

 

Asmodeus mal entrou na masmorra e chutou com força o peito do arcanjo. O estouro oco da bicuda do demônio em Uriel produziu um calafrio em Lilith, que entrou logo atrás. Ela estava com uma saia social rosa de algodão e um blazer de mesma cor. Também tinha um chapéu com várias rosas, brancas e vermelhas. Calçava uma sandália de salto alto. Era uma forma elegante de ficar mais alta, segundo dizia. Procurou usar tons claros, pois a masmorra era muito escura e cafona.

 

O chute do demônio quebrou uma costela do guerreiro. Uriel, apesar do forte impacto, não gritou ou reagiu. Não tinha forças para fazer nada. Ajoelhado e com os pulsos presos a correntes, sem olhar para frente, porque fraco, cuspiu sangue.

 

Onde estão?! Diga! Diga! Maldito Celestial.

 

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Asmodeus puxou os cabelos de Uriel e o fez olhar diretamente para seu rosto. Uriel estava deformado. O olho direito havia sumido em meio ao inchaço. O esquerdo estava roxo e fechado, provavelmente perfurado. A situação dos olhos do arcanjo aborreceu Lilith, pois ela não teria como mostrar o seu novo figurino como gostava de fazer. O nariz e a boca estavam sujos de sangue seco e enegrecido. Havia várias marcas de afiados dentes pelo rosto e pelo pescoço. Seus ferimentos estavam infeccionados.

 

Quem é a raça pura agora, filho da puta? – Chacoalhou a cabeça do prisioneiro. – Você é um fraco que se escondeu atrás do Paraíso e de Metatron. Vou matar você e toda a sua raça. Onde estão escondidos os outros arcanjos? Aqueles covardes que te abandonaram. Onde eles estão? Responda maldito!!! – Asmodeus, que era pura testosterona, puxou sua espada e, não fosse a intervenção de Lilith, teria fincado sua arma no peito de Uriel para dar cabo daquela vida.

 

Asmodeus, filho, não o mate ainda. Precisamos de algumas informações. Lembra-se? Além disso, você poderá torturá-lo mais um pouco em breve. Poderá mostrar para ele a derrocada de todos os seus amigos.

 

Asmodeus guardou a espada, “Degoladora tresloucada”, e perguntou impaciente, ainda segurando a vasta cabeleira suja do Arcanjo:

 

Onde estão os traidores?

 

O arcanjo, no limite de suas forças, balbuciou apenas, quase inaudível, algumas palavras:

 

Um por todos, todos por um.

 

um-por-todos-todos-por-um

 

Asmodeus, enfurecido, jogou Uriel contra a parede e saiu enlouquecido.

 

Malditos demônios. Deixaram-me um moribundo que tresvaria para interrogar. Quando eu assumir o poder, formarei verdadeiros guerreiros.

 

Lilith deixou o recinto logo atrás do filho. Uriel, após ser atirado contra a parede, apagou. A pele dos pulsos ficou ainda mais comprometida. A do pulso esquerdo rasgou. Estaria morto?

 

Algum tempo depois, Lilith, já vestida com um longo vestido roxo, que valorizava suas curvas, sempre muito bem informada, ficou sabendo que provavelmente havia um arcanjo no Inferno fazendo perguntas, espreitando, disfarçado entre os demônios e os rebanhos de almas, e cometendo alguns assassinatos. A informação chegou como mero rumor, mas a bela sabia que era verdade. Conhecia o senso de lealdade de alguns militares. “Provavelmente está buscando Uriel”, pensou a beldade demoníaca. “Burro”. Gargalhou. Sua missão agora seria mais fácil. Levou a notícia a seu filho, Asmodeus, que em um impulso de raiva, pensou em matar o arcanjo, dando o alerta geral. Enviaria todos do Inferno no encalço do invasor. O arcanjo desconhecido não teria como fugir. Com efeito, Moloch estava fechando todas as entradas e saídas do inferno e construía um competente sistema de inteligência e espionagem. Àquela altura, o Inferno havia deixado de ser uma terra estéril para ser um local que começava a pulsar forte. Todavia, Lilith teve uma ideia. Esperou passar as explosões de violência do filho, as juras de morte e os arroubos de ódio. Quando Asmodeus parou de vociferar blasfêmias, ela disse em tom de voz calmo e elegante:

 

Filho, sugiro que deixemos o invasor resgatar Uriel. Ele nos levará direto a todos os outros arcanjos e suas tropas. Facilitará nosso serviço. – Sentou e cruzou as pernas. Sabia que torturar Uriel não daria certo. Asmodeus o mataria, pois não teria a paciência necessária para realizar horas de torturas, vencendo a vítima pelo cansaço. Seu filho também não aceitaria que outro demônio, um profissional da área, torturasse o prisioneiro para obter respostas. Para Asmodeus, resolver a questão dos arcanjos era incumbência dele. Tinha a mente curta, pouco flexível.

 

Rafael se esgueirava pelo Inferno cada vez mais movimentado e pulsante. Almas e mais almas chegavam a todo o momento da Terra e dos depósitos de Mammon àquele local para abastecer a crescente horda demoníaca. Eram devoradas sem dó nem piedade pelo exército de Lúcifer. A visão era assustadora, pois constituía um verdadeiro genocídio, porém o arcanjo invasor estava resoluto e tinha convicção na sua decisão. Iria até o fim. Salvaria o amigo. Não precisava de ninguém para isso. Embora determinado, estava apreensivo e irritado, não só pelo ar pesado, que fedia enxofre, mas porque todas as vítimas da “Panaceia Universal”, demônios e almas perdidas, não sabiam dizer onde estava Uriel. Mas todas eram uníssonas em dizer, antes de morrerem, que os prisioneiros eram levados às masmorras do palácio de Lúcifer.

 

Os vulcões do horizonte estavam ativos, a terra tremia e era quente. Corpos em chamas e almas atormentadas eram cada vez mais frequentes. Rafael via que o céu do Inferno se enegrecia e inúmeros contingentes de demônios e criaturas bizarras chegavam a cada instante. Lúcifer não estava para brincadeira. A cada minuto que passava, ficava mais difícil passar incólume entre os grupos de demônios exaltados que blasfemavam contra Metatron e contra o Paraíso. Queriam sua vingança, queriam romper a maldição, queriam voltar a ser belos.  Rafael nunca viu tamanha concentração de ódio. O que uma pena injusta não fazia? Viu o invasor um imenso exército, de dez legiões, marchar rumo ao portal pelo qual ele e seus amigos fugiram. Os desgraçados já haviam removido todas as ruínas da Santa Sé… e ele que teve tanta dificuldade para se esgueirar sobre os escombros daquela construção humana.

 

Pensar não era sua característica mais forte. Dos arcanjos, era o mais imaturo e rebelde. Sabia que aqueles demônios na verdade eram anjos caídos, cuja beleza e honra lhes foram retiradas por terem adotado uma determinada posição política. Uma posição que assim como a dele e de seus companheiros contrariava Metatron. Mas aquilo não era importante naquele momento. Decerto, se descoberto, seria morto ou torturado, viraria prêmio de guerra ou viraria mais um demônio. Logo, a “Panaceia Universal” não teria piedade daquelas criaturas, assim como não teve com os demônios desgarrados que o interceptara. Ignoraria as palavras de Ezequiel. Com efeito, Ezequiel sempre dizia, em suas inúmeras conversas com o impulsivo Rafael, que os demônios deveriam ser perdoados, pois não eram culpados pelo difícil destino que trilhavam. Mas como não ter ódio daqueles que os traíram e aprisionaram seu companheiro horas atrás? Perdoar? Perdão era um conceito tão vago… Por que perdoar o imperdoável? Perdoar para Rafael era indiferença e conivência. Ele não perdoava, embora Ezequiel dissesse que perdão poderia ser meramente desculpa, tolerância ou libertação. Não! Rafael não desculparia os demônios, não toleraria seus crimes e não se libertaria da raiva até acabar com todos eles, pois nada justificava o que eles faziam aos celestiais – ataques suicidas, sequestros, mutilações e emboscadas. Precisava chegar ao palácio de Lúcifer.

 

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À medida que chegava perto do castelo do soberano, das sombras e sob capuzes e mantas escuras, Rafael escutava boatos cada vez mais frequentes de que Uriel estava preso e que estava sendo torturado nas masmorras do Palácio. Nas últimas horas, ouviu inúmeros capitães e líderes de pequenos bandos de demônio propagarem a notícia, celebrando as terríveis torturas a que o arcanjo era submetido. “A “Salvação Final” não perdoaria ninguém”, pensou Rafael. Não podia voar, pois seria facilmente capturado e não poderia se expor muito, pois desconfiava de que já estava sendo procurado, tendo em vista que já havia matado alguns demônios. E essa limitação era irritante. Já estava há mais de 24 horas no lugar, sozinho, alimentando-se de restos de almas, tentando percorrer aquela longa distância do portal até o palácio arruinado. Voar era tão mais fácil. Um por todos, todos por um.

 

NO PARAÍSO (II)

 

Senhor, também tenho uma informação urgente de nosso serviço de inteligência. Lúcifer saiu com um pequeno contingente para o Lago de Fogo. Ele pretende banhar a “666” naquela lava para torná-la mais poderosa que a “O poder das sete estrelas”. Podemos interceptá-lo e jogá-lo no Lago de Fogo antes mesmo da guerra explodir.

 

E o anjo mensageiro, esbaforido, retirou a cabeça de Aniel de uma caixa, o que deixou Metatron irritado. Aniel era a potestade de que mais gostava.

 

MAIS UMA VEZ NA MANSÃO DE KLEPOTH E A ESCADA DE JACÓ

 

Mãe, estes animais de olhos verdes, o que são?

 

São criações minhas. – Tergiversou Klepoth um pouco envergonhada, isso porque Samuel não saía mais de seu lado.

 

Criações?!” pensou Esmeralda. “Tem coisa aí”.

 

Temos que deixar o local. – Alertou Gabriel impaciente. – Precisamos voltar para junto de Jofiel e Ezequiel. Tenho um mau pressentimento.

 

Você tem razão. – Concordou Samuel. – Vamos embora.

 

Samuel, no entanto, notou que um exército subia a montanha e se aproximava rapidamente da fazenda de Klepoth. Gabriel, então, saiu da casa, subiu aos céus e viu que um poderoso exército de humanos, acompanhados de anjos, subia pela colina. Os soldados eram liderados por uma mulher, Elisa Bárthory, esposa do regente de Amelot. Ela gritava ensandecida, esquecendo-se de que era uma mulher em meio a centenas de homens religiosos:

 

– Matemos Klepoth! Deus está conosco! Matemos todos os que não estão do  lado Deus. Dizimemos os infiéis, assim como fizemos no Massacre de São Bartolomeu! Iremos para o Paraíso com Deus. – Com efeito, a mensagem de Metraton aos seres humanos já estava sendo espalhada pelos principados. Era a mesma instrução que fora dada ao Pontífice. Todos os governantes, regentes, reis, arcebispos e senhores feudais estavam sendo orientados a matarem todos aqueles que não acolhessem a causa divina. Armas celestiais e lanças do destino estavam sendo distribuídas para os aliados, de forma que a matança por meio delas fizesse com que as almas dos mortos fossem diretamente para o Paraíso.

 

Elisa, quando recebeu sua adaga celestial, “A Sanguinária”, apaixonou-se por aquele artefato. Uma arma sem igual, forjada pelo próprio Deus, embora o principado que a acompanhava, Nanael, tivesse dito que a lâmina era feita de nanotubos e que fora banhada em uma substância quântica. Munida daquela arma, Elisa nada temia, pois tinha certeza de que iria para o Céu caso morresse. Gritava para seus homens:

 

– Nada devemos temer, pois Deus está conosco. Veja os anjos do Altíssimo. Se Deus é por nós, quem será contra nós? – E completou: – Deus vos dará duas virgens por dia por toda a eternidade. Abusai delas. – Berrava Elisa fanaticamente para as pobres criaturas dependentes dos respectivos pênis. –  Deem a vida a Deus e subamos a Escada de Jacó. Façamos nossa jornada ascendente para Deus.

 

escada-de-jaco

 

Nanael olhava embasbacado para a cena se perguntando o que estava fazendo ali. Ela dizia o nome de Deus em vão tantas vezes que lembrava o sermão de um padre qualquer. “Será que ela não sabia usar pronomes?”, pensou o principado. “Se soubesse que viraria comida no Paraíso ou no Inferno certamente não teria motivação alguma para cometer as atrocidades que estava prestes a cometer”, pensou. “É tão bom pensar”, concluiu.

 

o que é religião?

 

O principado sentia pena dos seres humanos que seguiam a Igreja, pois eles menoscabavam outras crenças, como, por exemplo, aquela que acreditava na reencarnação, denominando-as, pejorativamente, como seitas, como se a própria Igreja não fosse uma. Era comum que fiéis da Igreja rissem das ideias do espiritismo ou da reencarnação, acusando-as de bobas, falsas, improváveis e infantis, mas, se pensassem bem, e considerando que a maioria dos crentes acreditavam na ideia de que corpo e alma podiam ser dissociados, o espiritismo e a reencarnação eram conceitos mais prováveis e verossímeis do que a existência de um Deus atemporal, sem nascimento, amadurecimento e envelhecimento, mas que mesmo assim já havia criado pelo menos um universo complexo.

 

A única coerência que Nanael conseguia enxergar nos humanos naquele momento era a vontade de morrerem por Deus e a felicidade que isso causava, visto que, por algum motivo, viveriam eternamente do lado do Homem Invisível. Nanael ficou surpreso, pois finalmente via alguma coerência naquele comportamento primitivo, isso porque os seres humanos, em regra, ficavam tristes quando um ente querido morria, mesmo acreditando que ele iria para o Paraíso. Apontada a contradição, justificavam a tristeza com a palavra saudade. Por que, então, já que estavam proibidos de cometer suicídio, sob pena de serem mandados para o Inferno, não encaravam a morte de frente, para aumentar a possibilidade de irem logo para o Céu? Por que não enfrentavam bandidos e injustiças de peito aberto ou os demônios invasores da Santa Sé, mesmo acreditando que Deus estava com eles? Por que só ficavam orando, esperando a morte chegar, de preferência o mais tarde possível e sem muitos traumas, dor e sofrimento, dispensando o destemor?

 

Enquanto Nanael pensava, o avanço do exército humano se acelerava e ficava cada vez mais fanático. Os homens que haviam fugido dos domínios de Klepoth foram mortos imediatamente pelo exército de Elisa, pois o fanatismo era cego e a sede de sangue grande. E de todo modo, os fugitivos eram imprestáveis naquele momento como integrantes de um pelotão. Eles seriam mais úteis como comida de anjo.

 

Os principados, seres de terceira hierarquia, aconselhavam os governantes, buscando manipular os humanos e suas guerras, de forma a abastecer regularmente o Paraíso de almas. Com o paulatino aumento da população humana, que se proliferava como ratos, os principados ganhavam importância, pois tinham que controlar as guerras humanas, visto que estas geravam um excesso repentino de almas espalhadas pelo Céu e pela Terra. Buscavam também, por meio de preceitos religiosos, impor a monogamia aos seres humanos, de forma a inibir a proliferação descontrolada dos terráqueos. Sabiam que a religião justificava até a violência e discriminação. Não optaram por sugerir a adoção de um estado laico e baseado na educação e trabalho, bem como no saneamento básico, pois isso certamente faria com que os seres humanos deixassem de se matar por questões irracionais, o que dificultaria o controle sobre eles. Os principados sabiam que a religião tinha o poder de fazer com que cada indivíduo tivesse a crença de que era o dono da verdade e que seu deus e seus costumes valiam mais do que a de outros povos, o que garantiria guerras regulares. Vivendo mais e se reproduzindo menos, os seres humanos deixariam, no futuro não muito distante, de atender a crescente demanda do Paraíso e, talvez, do Inferno. Mantendo os humanos na ignorância e misticismo, impondo regras morais e promovendo guerras quando bem entendesse, o Paraíso regularia o fornecimento de almas como melhor lhe aprouvesse. A questão do aborto era uma questão que tangenciava essa manipulação. A vida só era defendida de forma intransigente quando uterina, mas quando o ser humano já era maior, não havia muitos problemas morais para matá-lo ou para mandá-lo aos campos de batalha, isso porque era importante, por razões nutricionais, que a alma se desenvolvesse. O argumento principal utilizado pelos principados e conservadores era que a vida não podia ser suprimida, pois poderia dar bons frutos, como um padre ou um compositor prodígio, e que a mulher não podia ter qualquer controle sobre aquilo que gerava dentro dela – e que imporia obrigações futuras somente a ela. É claro que a Igreja, apesar de ser contra o aborto, não faria nada para ajudar no planejamento familiar, é claro que não daria apoio financeiro à mulher e é claro, de outro lado, e de forma contraditória, que não estimularia que as mulheres tivessem filhos todos os anos, alcançando cada uma o número de dez a vinte filhos, o que certamente aumentaria inúmeras vezes a chance de serem gerados bons frutos (novos padres e compositores). Em outras palavras, a Igreja era tão contraditória, conservadora e irracional, negando a própria essência e razão, por influência dos principados e do conservadorismo intrínseco de seus dirigentes, que apenas atendia as necessidades do Paraíso e a sua própria moral deturpada.

 

Quando havia excesso, o excedente de almas era remetido diretamente para o Inferno, sem qualquer tipo de triagem no purgatório. Como a Igreja e outros impérios expansionistas moviam guerras pelo mundo na época e matavam sem dó nem piedade, milhares de almas foram remetidas diretamente para o Inferno, onde ficariam confinadas, pois se se mantivessem na Terra, sem passar pelo Purgatório, poderiam acabar no Céu, por meio de contrabando, e alimentos de segunda ou contaminados, sem qualquer controle de qualidade, perambulando aos quatro ventos, era algo que Metatron não aprovava.

 

O fato de muitas almas terem sido encaminhadas para o Inferno, em que pese sua vastidão, colaborou com os planos dos arcanjos e com os de Lúcifer, que teria comida em abundância para seus exércitos. Com espaço e alimentação farta, os demônios de Lúcifer, graças ao gênio criativo de Abigor, aglutinaram-se rapidamente.

 

Voltando à situação da fazenda, os anjos que apoiavam Elisa rapidamente atacaram a residência.

 

– Maldição! – Balbuciou Samuel. – Gabriel, leve Lúcifer, Esmeralda e Klepoth contigo. Enfrentarei estes anjos e depois eu os seguirei.

 

– Ficarei com você. – Afirmou Klepoth e logo suas crias apareceram para apoiá-la. Samuel a olhou agradecido, mas tentou argumentar. Não queria que a virtude se machucasse.

 

– Fuja! Precisamos de Vossa Senhoria! Precisamos de teu conhecimento! – Gritou se preparando para suportar a carga angelical agressora.

 

– Não! Transmiti todos os meus conhecimentos para aqueles que me procuraram. Não me importa o que fazem com o conhecimento, pois transmiti com lealdade, integridade e honestidade os ensinamentos celestiais, humanos e científicos a mim confiados para fazer das criaturas profissionais e cidadãos conscientes, responsáveis e inteligentes. Minha função eu já cumpri. Mas ainda preciso ter alguém para amar e finalmente te encontrei, agora farei tudo para ficar ao teu lado.

 

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Aquelas palavras e o olhar firme daquela criatura calou Samuel. O amor verdadeiro era aquele incondicional, irresponsável, quente e irrefletido entre criaturas viventes. Ela, por mais que não parecesse, era uma virtude e sua palavra deveria ser considerada. Deveria ser respeitada e entronizada.

 

– Vão! – Determinou Samuel, já resignado e feliz por ter alguém que estava disposta a morrer a seu lado, um amor verdadeiro e concreto, fruto de interações físicas e dialógicas, não de epifanias, condicionamentos e revelações. E logo raios angelicais alcançaram o casal defensor.

 

Gabriel partiu para o acampamento dos arcanjos sem olhar para trás. Sabia que aquilo tudo havia sido uma péssima ideia, apesar das declarações de amor. Klepoth não serviria para nada! Atender a vontade da filha da virtude foi uma decisão estúpida de Samuel. Agora era apenas ele, o necromante, Jofiel, Ezequiel e um pequeno contingente de anjos leais esperando por sinais.

 

E assim, Samuel, Klepoth e os filhos da virtude ficaram para dar cabo daqueles seres humanos e daquele contingente de anjos ou, ao menos, para cobrir a fuga dos aliados. Além do objetivo pessoal de acabar com Klepoth, Elisa Bárthory foi instruída a eliminá-la imediatamente, pois ela possuía muito conhecimento sobre como construir armas poderosas capazes de destruir criaturas do porte de Metatron e Lúcifer. Será que sobreviveriam?

 

CONTINUA….

 

 

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