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Lúcifer e a conspiração dos arcanjos – Parte 5

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Vide trecho anterior.

 

– Morra! – E o necromante lançou sua esfera de energia negativa esverdeada contra o arcanjo Miguel. O ambiente se iluminou. O clérigo, no chão, ainda sofrendo os efeitos da investida do herói, e o necromante fecharam os olhos e se protegeram da grande explosão de luz que se seguiu. Quando conseguiram olhar diretamente para a passagem onde estava o arcanjo, notaram que ele ainda permanecia lá, como se nada houvesse acontecido.

Arcanjo Miguel 2

 

Noto que teus poderes aumentaram. – Observou a criatura.

 

Incrédulo, Lúcifer se preparou para atacar novamente, porém sentiu um forte calor em seu estômago e uma insuperável dor em suas costas. Havia sido atingido por uma fonte de luz no abdômen e arremessado contra a parede violentamente. Foi tudo muito rápido. Tontura.

 

Tenho absoluta certeza de que tu sucumbirás em poucos dias. Não poderás cumprir tua singela missão.

 

Missão?”, perguntou para si mesmo o clérigo.

 

Tu, desde que ficaste sob a influência do mal, aumentaste muito o teu poder, todavia não é páreo para um arcanjo como eu, muito menos para uma potestade ou para um dos demônios de Lúcifer. Tu és um fraco e morrerás em breve a menos que venha a conhecer o perdão.

 

– Perdoar a quem?! – Bradou o herói caído com alguma dificuldade. – Vocês tentaram me matar e agora querem me usar? – O necromante se levantou sofregamente. – Vocês acabaram com minha vida e com a vida da única pessoa que eu amei. Eu juro que irei matá-los.

 

O necromante preparou novamente um ataque.

 

– Onde está o corpo dela?! – Em desespero, Lúcifer gritou ao mesmo tempo que se lançava para um novo ataque. – Foi você, não foi?!

 

Lúcifer fez um belo trabalho em ti. Ele te cegou. Em breve tua alma será dele. – Disse com um certo menoscabo.

 

Lúcifer se preparou para arremessar seu ataque no adversário, mas sentiu um forte impacto no seu pulso.

 

Tu és um fraco, uma marionete patética do mal e que deseja vingança contra tudo e contra todos. 

 

marionete

 

– Espere! – Interveio o clérigo. – Que missão é essa a que se referiu, minha santidade?

 

Eu não sou uma santidade, não use vocativos mundanos para se dirigir a mim.

 

E Miguel dirigiu a palavra a Lúcifer:

 

Necromante, tu serás o encarregado da destruição do livro maldito. – Proclamou o arcanjo apontando para o Grimório. – Leve-o até o Lago de Fogo, situado no Inferno, e o destrua nas lavas flamejantes.

 

Silêncio.

 

– Por que eu? – Questionou o necromante ressabiado, com dor nas costas, no abdômen e no pulso alvejado pelo arcanjo.

 

O Grimório só pode ser manipulado por Lúcifer, demônios, serafins, querubins e por seres mortais que aprenderam a manipular a ciência negra. Qualquer outro ser que o toque será infecta… amaldiçoado. Poderá perecer! Uma morte grotesca e lamentável lhe será reservada, ou, pior, o infeliz sucumbirá ao poder de Lúcifer e passará a ser um servo do mal, mais um soldado demoníaco.

 

– Mas… e Esmeralda? – O necromante olhou para o arcanjo e depois para o santo caído na esperança de ter alguma resposta.

 

esmeralda 2

 

Esmeralda? – Indagou Miguel com um ar de desdém. – Ela não importa. A guerra total e cruel está para ser deflagrada, talvez estejamos diante do Juízo Final ou do triunfo do mal. Não podemos nos dar ao luxo de deixar este livro existir e contribuir para o fortalecimento do adversário. Sentimentos humanos devem ser extirpados de tua mente. Para Vossa Senhoria, nada é mais importante do que a destruição deste livro. Não podemos deixar que inocentes o toquem e pereçam ou sucumbam ao poder maléfico de Lúcifer. Seu Deus precisa de ti.

 

– Mas… – Tentou insistir o necromante tentando entender tudo aquilo, enquanto os olhos do clérigo brilhavam. Deus, perdão, bem contra o mal, eram termos que todo religioso gostava de tratar. O arcanjo Miguel havia caído como uma luva para São Paulo, já que dava-lhe moral e punha mais em dúvida o ateísmo do necromante.

 

Silêncio! – Bradou o arcanjo Miguel. – Tome o livro em mãos e parta para cumprir teu mister, humanoide. – Ordenou peremptório Miguel.

 

O necromante não sabia exatamente o que fazer. Odiava Miguel e queria matá-lo, mas o arcanjo era muito poderoso. Não havia como derrotá-lo. Odiava Lúcifer também, porque havia matado sua bela, mas o máximo que podia fazer contra ele era destruir aquele livro maldito, cujo perigo não sabia exatamente qual era. Deveria levá-lo ao Inferno? Como? Onde? Estava cansado de ser manipulado, mas queria, por outro lado, fazer alguma coisa contra seus manipuladores; queria, naquele momento em que via sua vida desabar, vingar-se de tudo e de todos. Além disso, na situação em que se encontrava, encurralado por um ser celestial poderosíssimo que poderia acabar com sua vida a qualquer momento e mandá-lo para o Inferno ou para o Purgatório, obedecer era a melhor forma de proceder. Talvez, se obtivesse sucesso, vingar-se-ia, ainda que de forma tênue e mitigada, do algoz de seu amor.

 

Assim, Lúcifer, o necromante, levantou-se com dificuldade e se dirigiu ao livro sob o olhar atento de Miguel e do clérigo. No fundo de sua alma, inconscientemente, aventava a possibilidade de salvar aquela que conquistou seu coração e sua lealdade.

 

Cansado, pegou o grande livro e o colocou fechado sob o braço direito e disse abatido:

 

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– Estou pronto.

 

Bem, tu tomaste a decisão correta, ainda que de forma recalcitrante.

 

– Qual é a maldição deste livro? – Perguntou com a voz fraca e preocupada o clérigo para Miguel.

 

O arcanjo Miguel apenas olhou com desprezo para São Paulo e nada disse. Voltou-se para Lúcifer:

 

Este livro traz morte e destruição para tudo o que está à sua volta. Ele contaminará rios, plantações e animais, adoecerá os homens e os matará, outrossim trará a destruição certa para cidades e vilarejos. Demônios virão atrás do Grimório para arrebatá-lo e fazer uso dele para seus propósitos vis: a morte de inocentes e o aumento dos exércitos malignos. Por isso, o tempo é imprescindível. Siga o rio até sua fonte, nas montanhas geladas. Atravesse a cadeia montanhosa. Passe por Amelot. Parta para o deserto, atravesse-o até chegar às cadeias vulcânicas. Lá fica a maior entrada para o Inferno. Nele, procure o Lago de Fogo e jogue o Grimório sobre suas lavas.

 

– Eu vou com você. – Disse o clérigo confiante. Era sua chance de ajudar o Deus onipotente em que acreditava.

 

Portador da ciência negra, tu não conseguirás sozinho. Para cumprir com êxito seu múnus, precisará da ajuda de um anjo da guarda. Apresento-lhe: Penélope, teu anjo da guarda. 

 

anjo da guarda

 

De trás de Miguel saiu um anjinho feminino, com longos e encaracolados cabelos louros, olhos de jabuticaba, nariz arrebitado, olhos curiosos, um tanto desengonçada, com rostinho de adolescente sapeca. Disse ela espontaneamente:

 

Oi, chuchu.

 

– Uma criança! – Exclamou o necromante.

 

Eu sou mais velha que você. Tenho 547 anos. – Disse confiante e mostrando a língua.

 

Este anjo é fundamental para o sucesso da empreitada. – Continuou o arcanjo Miguel. O necromante notou que do rosto de Penélope brotou um leve sorriso de satisfação e de arrogância. – Ela o protegerá em tua jornada e o levará ao submundo. Boa sorte!

 

Uma forte luz inundou o ambiente e quando ela se esvaneceu, o arcanjo Miguel havia sumido e só sobraram os três na câmera, sob a leve luz emitida por Penélope.

 

Vamos? – Perguntou o anjinho com sua voz fina e arrastada, típica de uma caipira.

 

Fora da caverna, os três se preparavam para a aventura. O necromante e o clérigo foram buscar provisões, enquanto Penélope ficou observando curiosa os dois, com um sorriso dúbio no rosto angelical. O necromante, pensativo, se perguntava como “aquilo” poderia lhe ajudar. Talvez fosse mais um fardo a ser carregado. Resolveu, em seu íntimo, ficar afastado do seu anjo da guarda.

 

Por outro lado, São Paulo estava muito curioso. Recalcitrante, o beato queria fazer milhares de perguntas, em especial, sobre a maldição do livro e da situação em que se encontrava os exércitos celestiais diante da iminente guerra. Comentou com o necromante sobre esta vontade e, questionado pelo necromante por que não fazia, o clérigo respondeu que havia mistérios que a Humanidade não precisaria conhecer. O necromante, no entanto, percebeu pelo poder da empatia que tinha ao olhar as janelas da alma alheia que o religioso temia, na verdade, perder o encanto. Notou nos olhos de São Paulo o temor de que aquelas dúvidas que surgiam em seu âmago, e que Penélope poderia responder, não eram, na verdade, mistérios, mas sim perguntas perfeitamente respondíveis de forma lógica.

 

Todavia, olhando o rostinho, ao mesmo tempo puro e malicioso do anjo, o necromante tinha dúvidas sobre se ela saberia responder alguma coisa. Ela parecia tão inocente e frágil… seria uma piada do arcanjo Miguel? A única resposta que o clérigo obtivera foi a respeito da milenar questão sobre o sexo dos anjos.

 

Enquanto recolhia amoras em meio à mata, sendo observado atentamente por Penélope, o necromante foi surpreendido pelo ataque sorrateiro de uma pantera negra. Por sorte, Lúcifer, que ficara mais ágil desde o último ataque de um animal selvagem, conseguiu se desviar do ataque. Penélope gritou, bateu asas e voou, o que deixou perplexo o herói.

 

Esse é meu anjo da guarda?”, perguntou-se decepcionado.

 

Logo que se virou para contra-atacar a fera, percebeu que ela estava gravemente ferida. Hesitou, não queria matar o bichano, mas teria que fazê-lo, pois em estado de necessidade. Uma luz esverdeada surgiu de sua mão. Era intensa. Tinha impressão de que o Grimório, guardado dentro de uma bolsa pendurada junto ao ombro, fazia a luz emitida mais poderosa. Seria morte certa para a pantera. Entretanto, ela não atacou e não recuou, caiu exausta no chão. Aos poucos, o bichano foi tomando nova forma: tratava-se de um ser humano. Logo apareceu São Paulo correndo assustado com o braço direito estendido em direção ao Grimório, como se quisesse protegê-lo. Chegando perto, notou que aquela mutação nada mais era do que:

 

– Um druida. – Afirmou o beato.

 

Druida

 

Ao cabo da transformação, apareceu um homem de estatura mediana, com aspectos que lembravam um pouco o de um elfo com o rosto atarracado. Estava seriamente ferido no braço no qual se notava grandes manchas de sangue e de um material escuro que era familiar ao necromante, embora ele não conseguisse identificá-lo de imediato.

 

– Você estava com ele! – Disse o druida nervoso ao necromante. – Onde ele está? – Continuou com tom ameaçador. – Onde ele está?

 

O necromante estava perplexo. De quem ele estava falando? Por que sangrava? E o que eram aquelas manchas negras na sua pele e roupas?

 

– Saiam daqui! – Gritou o Druida. – Vocês estão matando a floresta, malditos!

 

São Paulo se adiantou:

 

– Calma, viemos em paz!

 

– Eu vi você. – Apontou para o necromante. – Você estava com aquele maldito que fez isso comigo. – Mostrou os ferimentos e as grandes manchas negras em seu corpo e os traços de negrume em seu rosto.

 

O necromante começou a pensar. Tentava se recordar daquela pessoa que o acusava, mas tinha certeza de que nunca a havia visto. Passou então a pensar em quem seria a pessoa a que o druida se referia. Então lembrou: O’ Cruz! Sim, só podia ser ele. Lembrou-se dos ferimentos de Fobos após ser atingido pelas armas de O’ Cruz. Antes de entrar na caverna se lembrou de que O’ Cruz estava prestes a atacar um oponente que o necromante desconhecia. Tudo havia ficado muito claro. Como explicar toda a situação para o druida ferido gravemente a sua frente?

 

São Paulo, percebendo a situação, adiantou-se e disse:

 

– Eu curarei você, amigo. – Sentou-se no chão e começou a rezar em voz alta, invocando seu poder de cura, embora a oração fosse dispensável. Imediatamente, o druida sentiu seu corpo formigar. Assustado e prestes a atacar, foi contido pelo necromante que pediu que esperasse e que confiasse no santo homem.

 

O druida, naquele momento, não confiava em ninguém. Sempre adotou uma conduta neutra nas guerras humanas que viu rondarem as florestas. Jamais tomou partido de qualquer religião, pois, em seu íntimo, ainda que de forma não articulada, sabia que qualquer resolução de desinteligência deveria começar excluindo as pessoas que diziam saber mais do que podiam saber, e todos os religiosos diziam saber mais do que podiam saber. O druida também não se envolvia em querelas de Estados e não fazia distinção entre homens bons ou maus, entre anjos e demônios. Seu único compromisso era com a floresta na qual estava totalmente integrado, mantendo uma espécie de relação simbiótica com ela. Sem o habitat, o druida morreria, e sem este, a floresta seria invadida e derrubada por agricultores, pecuaristas e garimpeiros. Os últimos dias para o druida haviam sido tormentosos. Em todos os cantos das florestas ocorreram batalhas atrozes e cruéis entre a guarda celestial e grupos de bestas. Tais batalhas tingiram os rios de sangue e consumiram inúmeras árvores que tombaram ou arderam em chamas até se tornarem pedaços carbonizados de madeira sem vida. Em seus quinhentos e tantos anos de vida, jamais vira tamanha destruição.

 

Seus ferimentos não decorriam apenas das bombas de O’ Cruz, mas também da destruição pela qual sua floresta passou. Ele, um druida, não pôde fazer nada. Sentia-se impotente e frustrado. Mesmo contra aquelas duas pessoas que estavam na sua frente, sabia que nada poderia fazer depois de ter falhado em seu primeiro ataque felino. Por dentro se sentia copioso, mas por fora, porque orgulhoso, tentava se mostrar forte, como se fosse um cristão sendo impelido a questionar a própria fé com distanciamento emocional e análise crítica. Todavia, não tinha escolha, teria que confiar, pelo menos naquele momento, nos homens que lhe estendiam a mão, embora soubesse, de algum modo, que eles tinham ligação direta com tudo o que havia acontecido à sua floresta.

 

Com a “reza” de São Paulo, que estava envolto em uma aura branca, o druida se sentiu fraco e anestesiado, logo caiu no sono.

 

– Ele ficará bem. – Disse São Paulo.

 

– Onde está aquela pirralha? – Perguntou Lúcifer olhando para os lados. – PENÉLOPE, PENÉLOPE! – Gritou o necromante com vergonha alheia.

 

O anjinho feminino surgiu do alto de uma árvore, ainda  visivelmente assustado, batendo suas asinhas. Desceu vagarosamente até seus companheiros. Viu o corpo estendido do druida e se escondeu atrás de Lúcifer.

 

– Quem é ele, Trevinhas?

 

– Trevinhas?! – Riu admirado São Paulo.

 

– Trevinhas?! – Repetiu o necromante visivelmente irritado. – Vá recolher provisões para nós! – Gritou. Estava cansado, com fome, correndo risco de vida e acabara de ver que não tinha um anjo da guarda de verdade.

 

Penélope, contrariada e assustada, saiu rapidamente para cumprir seu dever.

 

– O Grimório? Está tudo bem com ele, né? – Perguntou São Paulo.

 

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O necromante hesitou, pois achou estranha a pergunta repentina, mas respondeu que sim. Aquela inescondível preocupação do clérigo com o Grimório começava a lhe incomodar. O que podia ser? O clérigo havia esquecido a idolatria pela Bíblia? O necromante sabia que qualquer livro, até uma teogonia ou uma nova teogonia, poderia ser objeto de fé, bastando transformá-lo em um texto com sucessivas frases curtas e simples, mas o clérigo mal o leu. Não era normal aquela obsessão.

 

Após trabalharem o dia inteiro, à noite, enquanto Penélope dormia, pois fadigada de labutar, coisa que parecia nunca ter feito, o druida acordou revigorado. Seu primeiro ímpeto foi atacar os dois homens distraídos com suas funções… e assim o fez. Arbustos agarraram os pés do necromante e o puxaram para o ar; inúmeros esquilos e outros animais atacaram imediatamente São Paulo.

 

– Ei, ei, solte-me!! – Gritou o necromante.

 

A gritaria foi tamanha que acordou Penélope que, aterrorizada, começou a chorar. Gritava para que toda aquela violência parasse. O druida, ainda consumido pela raiva, transformou-se na pantera negra de outrora, agora forte e ágil, e se aproximou dela. Os gritos do anjo aumentaram e ficaram mais agudos. O necromante, de ponta cabeça, esqueceu a dor e a sua situação e olhou perplexo para a cena. Conforme a pantera se aproximava de Penélope, as lágrimas e a sensação de desespero que ela transmitia se ampliavam. Bem próximo ao alvo, o animal, paulatinamente, diminuiu a agressividade. Parecia estar se comovendo. Aquele ser era inofensivo… Seu andar de sinuoso passou a cauteloso, quase cessando marcha. Sua boca, até então mostrando os gigantescos e afiados dentes caninos, fechou-se. Diante do anjo, parou e o fitou. Voltou a ser o druida, o que fez Penélope parar de chorar, embora o horror de seu rosto continuasse evidente.

 

Ele olhou com desprezo impotente para o anjinho e partiu em direção ao necromante:

 

– Quem é você? O que fizeram com a minha floresta?! – Vociferou.

 

– Espere! – Gritou São Paulo ainda com muitos pequenos animais o atacando. – Posso explicar tudo. Livre-me de seus animais.

 

O druida, então, estalou os dedos e os animais deixaram sua vítima para se juntar aos pés do senhor da floresta. O necromante caiu no chão, quase quebrando o pescoço, e derrubou o Grimório de sua bolsa.

 

– Cuidado! – Gritou visivelmente alterado o homem santo.

 

Assustado, o necromante, ao se recompor rapidamente, não obstante a dor da queda, guardou, contrariado, o livro em sua bolsa. Aquele velho se preocupava com o livro mais do que com ele. Olhou cauteloso para o druida e foi em direção à Penélope. Queria ver se estava tudo bem com ela. Ao verificar que não havia se ferido, perguntou ironicamente para a entidade celestial:

 

– É desse jeito que você vai me proteger, chorando e berrando, hein anjinho da guarda? – E a abraçou.

 

Então São Paulo começou a explicar para o druida:

 

– A razão de tudo isso é que Lúcifer acordou. Os seres celestiais tentaram impedir que ele voltasse para a Terra, mas não conseguiram. Uma nova guerra está para acontecer. Precisamos levar este livro maldito para o Lago de Fogo, no inferno, e destruí-lo para enfraquecer os poderes do mal.

 

– Esses anjos destruíram toda a minha floresta! – Respondeu o druida irritado. – Chegaram há alguns dias e abriram clareiras, mataram milhares de árvores e colocaram grandes exércitos aqui. Minha casa, minha vida, está um caos! Depois chegaram batalhões de demônios por todos os lados e batalhas explodiram por todos os cantos. Eu não pude fazer nada! – Reclamou visivelmente indignado, estando reticente de que os anjos compunham o lado do bem.

 

– O livro que trancafiava Lúcifer estava depositado naquela caverna em que entramos. Os anjos queriam proteger o livro. Não tiveram culpa.

 

A raiva do druida era grande, mas a imagem e atitudes de São Paulo e do anjinho amenizavam seu ímpeto destrutivo. Pareciam ser bondosos e a história contada por São Paulo parecia coerente. Não mataria inocentes. Aquele senhor havia salvado sua vida e o anjinho o olhava com pavor, como se pedisse clemência. Nem mesmo o necromante fez menção de atacá-lo, destinando um comportamento paternal ao anjo. Sentiu-se um vilão. Como não queria parecer um druida intolerante, decidiu, em seu íntimo, mostrar as causas de sua aflição e do seu comportamento agressivo e desconfiado. Então disse:

 

– Amanhã, pela manhã, estejam prontos. Mostrarei uma coisinha para vocês. – Uma lágrima rolou de seus olhos.

 

– O quê? – Perguntou São Paulo tenso.

 

– Amanhã pela manhã quero ter respostas, do contrário vocês todos morrerão. – Asseverou sem muita convicção, quase resignado.

 

O druida deu as costas a São Paulo e sumiu em meio à mata fechada.

 

O que ele quer mostrar?” Essa pergunta não saia da mente do necromante e do santo. Será ele confiável? Por prudência, os dois resolveram fazer uma vigia noturna. O primeiro que ficou acordado por metade da noite foi São Paulo, pois Penélope dormira no colo do necromante e porque o religioso estava acostumado a intermináveis vigílias.

 

Amanhece.

 

Acompanhado de um leopardo, o druida apareceu com os primeiros raios da manhã. Imponente e sério ordenou com um gesto que todos o seguissem. Cerca de duas horas se passaram. Penélope já reclamava do cansaço e do estado do seu cabelo. Queria voltar para o Céu. O druida, por outro lado, mantinha-se em silêncio. Era um silêncio perturbador. O necromante e São Paulo não tinham coragem de quebrá-lo a não ser para mandar Penélope, que vinha atrás de todos, calar-se. Subiram uma colina repleta de árvores verdes por meio de uma trilha quase imperceptível. A mata era extremamente fechada, porém, conforme o topo se aproximava, o necromante e seus companheiros percebiam que as árvores diminuíam em quantidade. Muitas estavam caídas e era evidente que foram derrubadas há pouco tempo. Com o céu já visível notaram estreitas cortinas de fumaça subindo a centenas de metros de altura e se dissipando nas altas camadas da atmosfera. Chegando ao topo, o druida se virou e com o braço indicou a paisagem. O movimento se assemelhava ao movimento típico de quem mostra uma grande obra de arte. Os olhos do necromante se arregalaram e seu coração começou a pulsar mais rápido. Jamais viu algo tão aterrador como aquilo. Seu estômago se embrulhou, sentindo vontade de vomitar. O que viu foi um vale devastado. Milhares de árvores derrubadas e chamuscadas se estendiam por todo o seu campo de visão. Sobre as árvores derrubadas e carbonizadas, milhares de estacas se levantavam e sobre elas milhares de corpos jaziam inertes. Todos empalados. Eram anjos mortos em batalha. Mesmo aos pés do necromante, a poucos metros, já se notava o sangue azul espalhado pelo solo e dezenas de partes de corpos mutilados por todos os lados, inclusive pequenos braços e pernas. Membros de… pequenos anjos. O necromante estava para vomitar quando ouviu a voz de Penélope terminando de subir a colina. Reclamava das bolhas no pé, querendo voar um pouco, o que fora proibido por Lúcifer, que temia que algum demônio a visse e os localizasse. O herói olhou assustado para São Paulo e correu em direção ao pequeno anjo. Abraçou Penélope. Não queria que ela visse aquela cena: milhares de anjos cruelmente mortos, com claros sinais de tortura, e, o pior de tudo, anjinhos como Penélope mutilados.

 

Ao pé da colina.

 

– Nossa busca acaba aqui. Isso é loucura! – Gritou o necromante com São Paulo.

 

– Você está nervoso, pense bem. Tudo faz parte do mistério de Deus. O arcanjo Miguel ordenou que nós levássemos o livro maldito ao Inferno e o destruíssemos. Até nos deu um anjo da guarda. – Ponderou o clérigo que, como todo devoto, cuja fé não podia ser questionada, acreditava que quando coisas boas aconteciam deus era bom e quando coisas ruins aconteciam deus era misterioso. Esse tipo de pensamento oriundo de pessoas inteligentes como São Paulo sempre foi considerado ofensivo pelo necromante e por pessoas racionais.

 

– Ela é “meu” anjo da guarda! – Apontando para Penélope que estava entretida com o Leopardo. – Não “nosso” como você quis dizer. E não temos mais nada para fazer aqui. Eu voltarei para Satânia e a levarei para alguma Igreja. Adeus!

 

– Você vai desobedecer a Miguel? E o Grimório? Precisamos ajudar as forças do bem. – Insistiu sem convicção o padre.

 

– Tome. Leve o Grimório você. Você só se preocupa com ele. Cumpra a maldita missão do “seu” arcanjo. – O necromante estendeu-lhe o livro.

 

– Eu não posso. Você sabe disso.

 

– Então eu o levarei comigo e esconderei em algum lugar.

 

Essa frase deixou o clérigo inquieto. Seu ar de fraqueza e compreensão havia sumido. Parecia estar sofrendo uma batalha interna contra ele próprio, como se o mal tentasse tomar conta dele. Então, finalmente, São Paulo conseguiu dizer:

 

– E Esmeralda?

 

Após contemplar a passageira mudança de comportamento de São Paulo, e pensar se aquilo era normal, o necromante voltou à carga:

 

– Você acha mesmo que é possível salvá-la?! Você viu aquilo lá atrás? – Berrou, gesticulando enraivecido.

 

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Quem é Esmeralda? – Perguntou Penélope, com sua voz fininha e auspiciosa, vindo em direção aos dois, acompanhada do leopardo.

 

– Ninguém! – Perdeu a paciência o necromante. – Nós vamos embora. Vamos sair dessa floresta, agora! – O druida, que observava sentado em uma pedra, assentiu. – Você dará um jeito de voltar ao Céu ou então ficará em uma igreja até que um dos seus amigos reluzentes venha te buscar.

 

Por que você está bravo comigo? – Os olhos dela marejaram. – O “papa” disse que você cuidaria de mim.

 

– “Papa”?! – Balbuciou o necromante. São Paulo e Lúcifer ficaram estupefatos.

 

CONTINUA…

 

Farei o lançamento do meu livro A Nova Teogonia na Bienal do Livro, no dia 01/09/16, às 19:30, no estande da Scortecci.

A Nova Teogonia tem na Livraria Cultura também!

O segundo volume está pronto e será lançado na mesma data!



Lúcifer e a conspiração dos arcanjos – Parte 6

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Vide quinta parte

 

– O arcanjo Miguel é seu pai? – Perguntou ajoelhando-se São Paulo.

 

Sim. – Sorriu timidamente o pequeno anjo.

 

Aquilo não tinha sentido! Arcanjo Miguel, poderoso que era, tinha conferido a proteção de sua filha a um necromante e o tinha mandado para o Inferno com ela. Além disso, havia mentido descaradamente quando disse que Penélope seria sua salvação. Que tipo de pai ele era? Que tipo de arcanjo ele era?

 

O necromante visivelmente cansado e indignado, pois mais uma vez se sentia manipulado, voltou-se para o druida e pediu que os levasse para fora da floresta. Não seguiria o rio até as montanhas geladas, como ordenou Miguel, pretendo voltar para sua terra natal. Porém, antes disso, deixaria Penélope na Santa Sé, poder central da Igreja na Terra. Não a deixaria em qualquer igreja, pois o arcanjo Miguel era “nervosão”. Questionou São Paulo sobre a localização da futura morada de Penélope, porém o religioso não quis falar. Com os olhos fundos, próprio de quem não dormia bem há dias, e com as roupas sujas, o religioso tentou ainda persuadir o necromante. Queria o santo que a missão dada por Miguel fosse cumprida. Então o necromante gritou irritado:

 

– Se você não vai me ajudar, eu posso encontrar a Santa Sé sozinho. Eu sei que ela margeia essa floresta.

 

O necromante sabia que a Santa Sé ficava próxima da floresta, perto de um rio. Mas qual? Em seus sonhos, não só aprendeu o caminho para a caverna, mas também notou que a floresta era enorme, estendendo-se por milhares de quilômetros quadrados e possuindo muitos rios e riachos. Precisaria do druida para alcançar o centro de poder da Igreja. Perguntou ao ser florestal se ele poderia levá-los à Santa Sé. A resposta foi negativa, pois ele tinha muito trabalho para fazer ali, em sua casa. Além da destruição de suas terras, o druida, por meio de sua arraigada interação com a mata, sabia que ainda existiam pessoas e criaturas andando a esmo por aquelas bandas. Todavia, indicou a direção noroeste para que seguissem. A Santa Sé ficava aos pés das montanhas mencionadas pelo arcanjo Miguel, todavia bem longe das fontes daquele rio. Lúcifer pegou a bolsa com o livro e a bolsa que continha provisões, chamou Penélope e partiu. Em uma última tentativa, São Paulo, afligido, como se esperasse por um milagre, mesmo sabendo que nunca houve uma suspensão da lei natural cientificamente comprovada, disse:

 

– Lúcifer, espere!

 

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Lúcifer continuou caminhando, porém Penélope, que estava logo atrás dele, parou. Ficou pálida, imóvel por alguns segundos. A feição sempre curiosa e dúbia abandonou seu rosto. Ficou apavorada. Aquele nome: Lúcifer. Sempre aprendera que Lúcifer era a criatura mais diabólica do mundo. Sabia que ele enganava as pessoas, promovia guerras, discórdia, morte, traições e infortúnios. Sabia que ele se rebelou contra todo o Paraíso, que enganou milhares de anjos, que destruiu a unidade celestial, que confrontou os serafins, que machucou seu pai em batalha e que estava prestes a voltar para tentar acabar com todos novamente. Todos no Céu sabiam disso e todos sabiam que só os serafins poderiam dar cabo de Lúcifer.

 

O necromante, após andar alguns metros, parou. Não sentiu a presença de Penélope. Olhou para trás e viu o rosto transfigurado do anjinho. Voltou-se e foi em direção a ela. Nunca vira tamanha expressão de pavor. Os olhos dela estavam molhados, cansados e vermelhos de terror, e a pele mais alva do que nunca. A expressão de abatimento saltava aos olhos. Nunca achou que um anjo pudesse ficar feio. O aspecto dela pareceu-lhe pior do que os dos anjos mortos e torturados na colina acima. A criança se preparava para fugir. Começou a bater asas, porém, antes que pudesse ganhar altura, o necromante segurou um dos calcanhares dela. Ela gritou e desesperada chutou uma, duas, três vezes a cabeça do necromante. São Paulo e o druida vieram em auxílio do necromante, porém, antes que chegassem, ele soltou o anjo que subiu, em fuga, a colina.

 

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– ESPERE! – Berrou São Paulo. – Por que você a soltou? Podemos explicar para ela! – Suplicou o cansado santo.

 

– Ela não é mais problema meu. – Respondeu de forma grave o necromante.

 

Alguns minutos depois um longo grito de agonia foi ouvido por toda a floresta. Os três subiram apressados a colina. No topo dela, viram Penélope ajoelhada, inerte, diante do morticínio. A hecatombe a deixara fraca, parecendo um vegetal. O necromante pegou-a no colo e a levou para onde estavam antes.

 

A noite chegou.

 

Na manhã seguinte partiram Lúcifer, São Paulo e Penélope.

 

Maldito nome! Penélope passou dias incomunicável. Olhava com ódio para o necromante. Estava irritada. Nem mesmo o leopardo, que viera a pedido de São Paulo, confortava-a. Ela vivia abraçada com o bichano, sem, contudo, abaixar a guarda. Encarava incansavelmente o necromante e todos os passos deles eram analisados; tudo que ele fazia era visto como atitudes de um enganador. Não aceitava nem um afago, agrado ou palavra amiga do necromante. Tinha certeza de que a estava enganando. Não vislumbrava qualquer outra hipótese.

 

penélope do mau

 

Lúcifer não sabia o que fazer para ganhar a confiança de Penélope novamente. Não entendia como um anjo poderia odiar tanto. Ele disse inúmeras vezes que só os nomes eram iguais, mas que eram pessoas, ou seres, diferentes. O herói também disse que ela poderia ir embora quando quisesse… porém ela não ia. Ela permanecia em um silêncio resoluto e sepulcral. Acompanhava-o na caminhada, sempre atrás, de atalaia. O necromante estava ficando com medo daquele olhar e daquele comportamento. Queria chegar logo à Santa Sé e deixá-la. Pressentia que algo poderia acontecer de mal a ele, pelas mãos dela. Tinha a impressão de que a cada dia Penélope ficava mais fria, mais cruel. Talvez fosse melhor lutar contra o arcanjo Miguel, pois sua morte seria rápida e indolor, sem aquele clima de terror e medo insuportáveis que Penélope criava com seu silêncio e com seu olhar impiedoso. Tinha a impressão de que o anjinho planejava alguma coisa.

 

Outrossim, os sonhos do necromante com Esmeralda continuavam tão desagradáveis quanto o primeiro que teve. E, em todos eles, uma estranha, bela e cruel mulher estava junto de sua amada, sempre praticando alguma atrocidade contra ela.

 

Além de Penélope e dos sonhos desagradáveis com Esmeralda, o necromante tinha um outro problema, talvez o maior: São Paulo.

 

O velho homem estava doente, magro, abatido e sua pele estava levemente esverdeada. Andava como um moribundo, envolto em roupas que lhe cobriam o corpo inteiro. E, ainda que mantivesse a sanidade mental, às vezes falava coisas desconexas. Todas elas tinham relação com o livro. Às vezes tinha atitudes intempestivas. Andava irritado. Matava animais com crueldade para que ele e o necromante pudessem comer. Às vezes se referia com ódio à Igreja e aos seres celestiais, não obstante tivesse que parar a jornada quatro vezes ao dia para orar. O necromante não entendia aquele comportamento. Angustiado, tentou conversar com São Paulo por diversas vezes, mas este dizia que estava tudo bem.

 

religioso do mal

 

O que mais intrigava e preocupava o necromante era a obsessão do santo pelo livro. O clérigo não conseguia ficar longe do livro. Sempre perguntava sobre ele e falava constantemente de sua importância. Às vezes, assustava-se e corria para perto da bolsa. Pedia para ver o livro. Queria certificar-se de que nada de mal havia acontecido com ele. Estava extremamente inseguro e cada vez rezava mais fervorosamente. A cada dia que passava, a dependência do livro aumentava. Havia horas que perguntava inúmeras vezes se realmente o livro estava em segurança, se não havia caído colina abaixo e se não havia sido esquecido entre uma parada e outra para descansar. São Paulo se sentia constrangido, pois sabia que incomodava, sabia de suas condições deploráveis de saúde e sabia que causava perplexidade e asco no necromante, acostumado a lidar com criaturas putrefatas. Entretanto, nada podia fazer. Em seu íntimo, sabia por que estava assim e sabia que logo o necromante também saberia, se já não sabia.

 

Os três, mais o leopardo, caminhavam pela floresta na direção nordeste, usando como sinais de orientação as estrelas e o sol, conforme orientados pelo druida. Repentinamente, o clérigo, que andava atrás de todos, parou e gritou desesperadamente. Arrancou os panos que recobriam o seu braço direito e jogou-os fora. Estava ardendo muito. Era uma dor lancinante. Assustado, o necromante se virou imediatamente e viu uma imagem assustadora: o braço direito do clérigo estava em carne viva, porém era uma carne preta e estragada, que parecia estar se decompondo. Havia inúmeros tecidos, desde pele até músculos e cartilagens, pendurados. Então, automaticamente, o necromante se lembrou de que o clérigo havia dito que tentara tirar o livro da caverna. Ele tocou no livro! Lembrou-se da maldição a que se referiu o arcanjo Miguel: terá uma morte horrenda ou virará um demônio. E agora?

 

O clima entre os dois ficou tenso. O necromante não poderia esperar para ver se o clérigo viraria um demônio ou se morreria. Colocaria em risco a sua vida e a de Penélope, que parecia não se importar com a situação do clérigo. Talvez, na cabeça dela, a situação de dor excruciante de São Paulo, um homem bom, fosse só mais um motivo para odiar o necromante, afinal de contas ele se chamava Lúcifer, o flagelo do Paraíso.

 

Eu preciso do livro. – Falou desesperado o clérigo. Sua voz assemelhava-se ao de um demônio.

 

Antes que o necromante pudesse responder alguma coisa, houve uma grande explosão. Ambos foram atirados para longe. Desnorteado, o necromante sentiu a bolsa que guardava o Grimório ser-lhe tirada. A imagem diante de si estava curvilínea, mas ainda assim pôde reconhecer uma pessoa: O’ Cruz.

 

O alquimista, desde o início, quando acompanhava o antipaladino, estava atrás do livro. Acreditava que, com o Grimório, no qual havia sido selado um dos seres mais poderosos que já existiu, poderia descobrir os caminhos para se chegar à Pedra Filosofal e ao Elixir da Vida Eterna. Foi o que lhe prometera um demônio poderoso chamado: Yen-lo-Wang. Este, para seduzir O’ Cruz, um excepcional e rico alquimista que criara e comercializava inúmeros produtos, desde ração humana, passando por produtos de higiene, até venenos, ensinou-lhe a preparar uma solução explosiva, ao que se denominou pólvora. Uma substância altamente explosiva que levaria à morte imediata muitos inimigos. O alquimista ficou boquiaberto quando Yen-lo-Wang demonstrou o efeito destrutivo da substância.

 

pólvora

 

– É um poder divino?

 

O demônio ficou um pouco decepcionado com a ignorância humana, que às vezes se manifestava até em pessoas inteligentes e bem instruídas.

 

Não, é ciência. – Respondeu Yen-lo-Wang. O demônio teve certeza de que a humanidade ainda levaria milhares de anos para se tornar uma civilização livre das influências religiosas e harmoniosa com o saber técnico-científico, na qual a busca por respostas racionais e a pesquisa prepondera sobre a inutilidade daqueles que recorrem ao Deus das lacunas, pessoas preguiçosas e passivas que atribuem tudo o que não podem explicar a uma força sobrenatural.

 

A pólvora, mais a promessa de adquirir conhecimentos suficientes para descobrir a Pedra Filosofal e o Elixir da Vida Eterna, fez com que o alquimista se esquecesse de sua vida de comerciante e químico notável para perfilar-se do lado de Lúcifer e dos demônios. Era sua única esperança de conseguir as duas fórmulas que há milênios eram perseguidas pelos alquimistas, levando-os, no entanto, à desgraça e à perdição, invariavelmente. O’ Cruz tinha finalmente sua relíquia. Não precisava mais servir à causa dos demônios, já havia ajudado muito os seres infernais.

 

O necromante viu o alquimista se afastar. Olhou para os lados, ainda tonto. Queria saber como estavam seus companheiros. O leopardo estava morto, Penélope havia desaparecido e São Paulo, que na explosão perdera o braço direito, estava de pé, ensanguentado e sujo de pólvora. Deveria ter morrido com a explosão. Entretanto, a fisionomia do religioso estava agressiva. Parecia que tinha o demônio no corpo. Rosnava de ódio ao olhar para O’ Cruz. Este se virou e percebeu a intenção do inimigo de agredi-lo. São Paulo, cambaleando e sofregamente, correu em direção ao alquimista que expeliu algo na face deformada do clérigo. Este caiu imediatamente e se debateu no chão, como um inseto. O’ Cruz embrenhou-se mata adentro. O necromante se arrastou para perto do clérigo enquanto o algoz fugia.

 

– Mate-me! – Suplicou o clérigo. A voz voltara a ser humana.

 

– Mas… – Disse perplexo o necromante.

 

– Mate-me e use meu corpo para matá-lo. – Um monte de sangue saiu de sua boca. Em seguida, seus olhos finalmente mostraram que a transformação se completara e que São Paulo havia virado um demônio agressivo que, mesmo moribundo e sem forças, tentou atacar o antigo amigo. O necromante jamais matou alguém. Sentiu dó do clérigo que tentara matá-lo na igreja e que depois o ajudara tanto. Faria sua vontade. Levantou-se com dificuldade e mirou sua bola de energia na face do demônio. Atirou. São Paulo parou de se mexer. Uma lágrima rolou dos olhos do herói. Então invocou o seu outro poder, o de utilizar os corpos mortos para atacar o inimigo. O corpo deformado de São Paulo se levantou, bem como o corpo ensanguentado, porém inteiro, do Leopardo. Lúcifer mandou os dois no encalço de O’ Cruz.

 

Ao alcançar o inimigo, o corpo de São Paulo, por um flanco, atacou o fugitivo. A vítima atacou com mais uma bomba de pólvora e dessa vez o corpo de São Paulo se esfacelou por completo. Antes que pudesse se recompor do susto de ver São Paulo de pé novamente, o ataque do Leopardo veio por trás, com suas garras e presas poderosas, a morte foi instantânea. O necromante caiu extenuado.

 

Passados alguns minutos, entretanto, ouviu passos perto dele. Sentou-se no chão e viu Penélope. Ela estava olhando friamente para ele. Em sua mão estava um instrumento metálico que parecia ser a ponta de uma lança.

 

lança do destino

 

Essa é a Lança do Destino. Ela serve para matar demônios; nela correu o sangue de um dos filhos dos serafins.

 

Em um último esforço, o necromante se levantou para impedir o iminente ataque, todavia, os ferimentos que O’ Cruz lhe causara eram profundos. Sentiu a lança afundar em seu abdômen. O anjinho feminino ao ver aquilo (a carne viva sendo perfurada por uma lança, o grito agonizante do homem e Lúcifer tombando no chão) chorou desesperado, talvez porque não acreditasse que conseguiria ferir mortalmente alguém, e saiu voando por entre as árvores, tentando se esconder de seu crime.

 

Lúcifer, após tirar a lança da barriga, ficou por um largo espaço de tempo ali, provavelmente por várias horas, esperando a morte chegar. Apesar da dor, estava curioso para saber para onde seria mandado: para o Inferno ou para o Purgatório, eterno, ou para o Paraíso? Nenhuma das alternativas parecia animá-lo. Estava quase passando para o outro lado da vida, quando viu dois rostos familiares: Hermes e o druida.

 

– Ouvimos a explosão e viemos apurar o ocorrido. Fico feliz por revê-lo. Achei que nunca mais o veria. Onde está Esmeralda e O’ Cruz? – Indagou Hermes, com seu habitual ar jovial e lépido. – Acredito que ele tenha atirado uma daquelas bombas. – O necromante não respondeu às perguntas do amigo, apenas desmaiou.

 

Enquanto o herói estava desacordado, o druida cuidou dos ferimentos de Lúcifer, em especial daquele aberto pela Lança do Destino. Por sorte, o corte não havia sido profundo. Nenhum órgão vital havia sido atingido. Penélope era bem menor que o necromante e também não havia atacado pelo ar, caso contrário, o necromante estaria morto.

 

Lúcifer havia dormido por horas, talvez por quase um dia inteiro. Quando acordou, viu o druida cuidando de uma planta. Levantou-se com dor de cabeça. Olhou para os lados e viu Penélope sentada. Assustou-se. Logo, no entanto, notou que a expressão da companheira infantil já não era de ódio. Pelo contrário, era de culpa. Seus olhos estavam marejados. Ela tentou sorrir. O necromante, amargurado, virou o rosto. As feridas ainda doíam e sua barriga estava enfaixada. Então lembrou-se: o Grimório. Exasperado se levantou e, ao fazê-lo, sentiu dores muito fortes por todo o corpo, mas mesmo assim tentou ir em direção ao druida. Caiu de dor, porém. O druida veio em seu auxílio.

 

– Onde está o Grimório? Onde está? – Perguntou desesperado.

 

– Está naquela bolsa. – Respondeu calmamente o druida.

 

– Você o tocou? Alguém tocou nele? – Indagou veloz e interessado.

 

– Não, ninguém mexeu nele.

 

Um sentimento de alívio percorreu o corpo de Lúcifer. Lembrou-se do fim trágico de São Paulo. Não aguentaria passar por aquilo novamente.

 

– E Hermes?

 

– Foi buscar alimentos. Descanse. – Então o druida voltou a cuidar de sua planta.

 

Algum tempo depois, Hermes chegou, afagou a cabeça de Penélope e se dirigiu para onde estava o amigo deitado. Os dois se sentaram ao lado da fogueira e começaram a conversar e comer as prendas do ladino. Penélope se sentou ao lado de Hermes e seu olhar suplicante se dirigia ao necromante que, no entanto, o ignorava. Lúcifer, calidamente e resumidamente, pois cansado e triste com tudo o que havia acontecido, contou todas as aventuras e tragédias pelas quais passara: a morte de Esmeralda, o reaparecimento de Lúcifer, a guerra iminente, a trajetória de São Paulo e as palavras do arcanjo Miguel. O ladino ouvia tudo com atenção e teve um leve sobressalto quando ouviu a palavra guerra. Por fim, o necromante disse que abandonaria a busca, que não iria até o Inferno e que não destruiria o Grimório no Lago de Fogo. Levaria Penélope até a Santa Sé e lá a deixaria. Queria voltar para Satânia, saber o que aconteceu com seus pais e com os outros necromantes. Tinha esperança de que, como ele, outros houvessem sobrevivido. Enfim, disse que queria refazer sua vida e tentar esquecer tudo aquilo.

 

– Mas e Esmeralda? – Indagou o ladino. – Segundo São Paulo há possibilidade de resgatá-la e ele não parecia ser o tipo de homem que mentiria.

 

O necromante silenciou.

 

Ela é sua namorada? – Perguntou Penélope resignada.

 

O necromante não olhou para ela e nem respondeu.

 

Persistente, o anjinho disse:

 

Eu sei como chegar ao Inferno e sei onde ficam as almas dos mortos.

 

– Como você sabe onde fica o Inferno? – Perguntou Hermes.

 

Eu e meus amiguinhos íamos brincar lá, escondidos. – Riu-se timidamente. – Quando os demônios iam embora, brincávamos com algumas almas penadas. Nós tínhamos tanta pena delas. Elas sofrem tanto de solidão lá. – Disse com olhar triste e sincero.

 

alma penada

 

– O Inferno é tão mal guardado assim?! – Surpreendeu-se Hermes.

 

O Inferno tem várias entradas. Algumas não têm qualquer demônio vigiando, outras são tão estreitas que só dá para passar um anjinho de cada vez. Não sei por que meu “papa” quis que tomássemos o caminho mais longo, mais deserto e mais difícil. Levaríamos dias até chegar lá. – Olhou para o necromante tentando agradá-lo. Queria mostrar que era sabida e que poderia ser bem útil. – Sei como chegar lá mais rápido. Eu ia com minha amiguinha Asaliah. – Por um segundo, Penélope ficou triste. Estava com saudades da amiga.

 

– Você vai para a Santa Sé, seu demoniozinho. – Disse rancoroso o necromante, ainda refém das dores.

 

Não Trevinhas, não Trevinhas, não me leve para lá. – Suplicou a entidade celestial. – Os principados dizem que a Igreja é suja como a maioria das ins…ti…

 

– Instituições. – Ajudou Hermes.

 

Isso! – Aliviou-se a anjinha. – Instituições humanas. Há muitos padres que enganam as pessoas, enriquecem de forma errada e feia e outros… – engoliu a própria saliva. – … se comportam como demônios quando estão com mulheres e com crian…

 

– Acho melhor não a levar para a Santa Sé. – Aconselhou Hermes interrompendo-a.

 

– Minha ideia era largá-la nas proximidades da sede da Igreja, mas, pensando bem, sim, você tem razão. Também corremos o risco de sermos queimados vivos se alguém nos vir. A Igreja não perdoa, apesar de pregar o perdão. Mas quem são os principados, hein senhorita? – O tom foi irônico.

 

Penélope sorriu:

 

Eles são membros da Terceira Hierarquia. Ficam na Terra, próximos aos governantes, são os con… conselheiros, acho que é isso.

 

– O que mais você sabe? – Indagou o necromante.

 

Eu sei bastante coisa. – Sorriu. Era a oportunidade de se redimir perante o seu amigo.

 

Então Penélope começou a falar, com alguma dificuldade, pois não era muito ligada aos estudos e aos assuntos políticos do reino celestial. Da narrativa confusa, o que Lúcifer, Hermes e o druida puderam depreender foi que os serafins eram os chefes do Paraíso e que tinham derrotado Lúcifer séculos atrás. Entretanto, o Céu vivia em um estado permanente de medo, tensão e vigilância, pois era certa a volta do senhor das profundezas. Embora ninguém soubesse quando e como, nem mesmo Metatron, o Grande. De fato, o número de atentados terroristas perpetrados por demônios havia aumentado e o Inferno começava a se agitar. Esses eram os sinais que os seres celestiais tanto temiam. Lúcifer era responsabilizado pela morte de milhares de anjos e por ter dividido o reino do céu com sua cobiça, arrogância e rebeldia. Muitos o seguiram e famílias foram separadas para sempre. Houve traições dentro da primeira hierarquia celestial e os querubins já não eram tão confiáveis aos olhos dos serafins. Estabeleceu-se uma certa rivalidade que persistia até os dias de hoje e que com a volta do Rei das Trevas aumentou novamente. Segundo as palavras de Penélope, todo o céu estava mobilizado. Havia movimentação de grandes contingentes de exércitos e o arcanjo Miguel, bem como outros arcanjos como Rafael, Samuel, Jofiel e Uriel, estava à frente de muitos deles, embora não fosse o principal general, posto este pertencente às potestades.

 

Metatron

 

Hermes, sempre arguto, perguntou:

 

– E Deus? Ele fará alguma coisa? Você já o viu?

 

CONTINUA…

 

Farei o lançamento do meu livro A Nova Teogonia na Bienal do Livro, no dia 01/09/16, às 19:30, no estande da Scortecci.

A Nova Teogonia tem na Livraria Cultura também!

O segundo volume está pronto e será lançado na mesma data!

 

PS: próximo capítulo só depois do dia 01/09


Lúcifer e a conspiração dos arcanjos – Parte 7

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Vide parte 6

 

O que tem Deus? – Respondeu desconcertada Penélope.

 

– Você não fez menção a ele na sua explicação. Acima dos serafins deveria estar Ele.

 

Ah! – Exasperou-se o anjinho. – Os serafins são Deus. Eles se reúnem e se revezam na função de Deus.

 

serafins

 

– Então Deus é um cargo! – Exclamou maravilhado o ladino. – Interessante! – Ponderou e um sorriso lhe saltou da face, pois milhões de possibilidades estavam postas à mesa. Talvez isso explicasse as inúmeras ideias, histórias, teorias e religiões sobre uma mesma entidade hipotética.

 

Silêncio.

 

– Bom. – Disse o necromante ainda um pouco perplexo. – Seu pai como um grande general celestial não deveria deixar sua filha aqui na Terra. Você é muito criança, tem apenas 547 anos…

 

347. – Interrompeu ela com um sorriso traquinas.

 

O necromante respirou fundo. Percebia que os anjos, assim como os humanos, também não eram dignos de credibilidade. Prosseguiu:

 

– Por que ele fez isso?

 

Todos os anjinhos foram convocados pelos serafins para irem à guerra, mas meu pai tinha uma missão especial para mim e não me deixou servir o exército.

 

O necromante se lembrou do massacre que vira alguns dias atrás em outra parte da floresta e dos pedaços de anjinhos espalhados por todos os lados. Cena lastimável. Causava-lhe espécie seres tão pouco desenvolvidos serem mandados para o campo de batalha. O que acontecia no Céu? Olhou para a carinha de Penélope: tão imatura, inocente, sensível e volúvel. O arcanjo Miguel queria protegê-la. De fato, ela não teria chance alguma no campo de batalha, ainda que portasse a Lança do Destino.

 

– E que missão é essa? – Interveio o druida, que até então havia ficado quieto.

 

Meu “papa” disse que eu tenho que destruir o Grimório e guardar o Lago de Fogo e que o necromante, o único que poderia carregar o livro, me ajudaria. Disse também que não posso deixar os demônios fugirem de lá, quando os anjos atacarem… Mas eu não quero fazer isso, é chato! Meu “papa” está me enrolando, lá é uma região deserta, fica longe das muralhas do Reino de Mammon. E ele sabe que não há demônios para eu derrotar. Não entendo por que faz isso.

 

lago de fogo inferno

 

– Você já lutou com algum demônio? – Perguntou o necromante.

 

Não.

 

– Já ficou diante de um?

 

A resposta também foi negativa.

 

– Quem é Mammon? – Perguntou Hermes.

 

É o regente do Inferno… ou será que é presidente? – Perguntou-se para si mesma, confusa, tentando forçar a memória. Penélope já estava aparentando cansaço. Tinha ficado muito tempo explicando como funcionava a hierarquia do Céu e quem era quem, além de contar sobre suas aventuras e a de seus amiguinhos no Inferno.

 

Enquanto caminhavam, o necromante, Hermes e o druida, ficaram várias horas ponderando as informações dadas por Penélope. Ela, por seu turno, não obstante de tempos em tempos relembrar as imagens que ficaram guardadas em sua memória de anjos mortos, mutilados e em decomposição, fato que lhe causava desespero e comoção, ao que seguia uma torrente de lágrimas, preocupava-se em arranjar novos amiguinhos animais. Era certo que o arcanjo Miguel queria proteger sua filha, mandando-a para o Inferno, que, ao que tudo indicava, era imenso, e com muitas partes pouco patrulhadas. Também era certo que a guerra seria dolorosa e cruel, pois até anjinhos eram mandados para o campo de batalha. Chegaram à conclusão de que quem mandava nos céus eram os serafins, mas não sabiam maiores detalhes sobre eles, pois Penélope tinha faltado em uma das aulas para ir brincar com almas no Inferno. Ficaram sem saber quem era exatamente Metatron e qual sua importância entre os serafins. Pensaram em Mammon, o regente, ou presidente, do Inferno, mas não chegaram a conclusão alguma.

 

Hermes, em sua caminhada e em seu íntimo, pensava e repensava, imaginava, teorizava, tentando visualizar, com base nas informações prestadas por Penélope, como funcionava a sociedade celestial. Imaginava como o cargo de Deus era ocupado pelos serafins, porque Lúcifer havia se rebelado, quem era Metatron e porque ele tinha a alcunha de “o grande”. Imaginava, outrossim, os exércitos e a hierarquia celestial, a política dos anjos, suas relações com os demônios e o terrorismo. Pensava sobre Mammon como regente, ou presidente, do Inferno. Era um sem fim de pensamentos e indagações desprovidas de respostas que faziam com que sua mente se cansasse. Às vezes, impelido por sua curiosidade, procurava Penélope em busca de alguma reminiscência na memória dela, algo que o pudesse fazer compreender o funcionamento das coisas, mas suas diligências junto ao anjinho restavam infrutíferas. Quando incomodada pela insistência e pelos pitos do ladino, que se resumiam a lembrá-la da necessidade dos estudos, ela respondia:

 

Para que estudar se eu vou morrer? – Depois disso a conversa acabava. O ladino voltava aos seus pensamentos e Penélope aos seus bichinhos.

 

Da mesma forma que Hermes estava absorto em seus pensamentos sobre as engrenagens do mundo celestial, o necromante também tinha suas reflexões e anseios e todos se resumiam a uma palavra: Esmeralda. O anjinho sabia inúmeros caminhos e formas para entrar no Inferno. Ela disse que brincava com as almas torturadas pelos demônios e informou que havia grandes áreas vazias no Inferno. Além disso, lá, por mais estranho que pudesse parecer, segundo Penélope, era o local mais seguro para um anjo inocente e indefeso estar.

 

Em meio a tantas obscuridades, reflexões e esperanças, Hermes explicou a Lúcifer que, enquanto ele se recuperava da batalha contra O’ Cruz e do ferimento feito por Penélope, havia conversado com o anjinho sobre o nome do necromante. Mostrou a Penélope que o Trevinhas não havia morrido com a Lança do Destino e que, portanto, não se tratava de um demônio ou mesmo de Lúcifer. Hermes fez com que ela percebesse que aquele Lúcifer era bonzinho e explicou que o nome dele já era uma pesada cruz a ser carregada. O necromante, então, quis saber como havia sobrevivido à invasão à floresta, aos demônios e como se tornara amigo do druida. E Hermes respondeu:

 

– Al Gore! Bem, ele estava realmente matando todos que ainda estavam em sua floresta. Eu estava perdido até poucos dias atrás, quase morri várias vezes, fui atacado e perseguido por vários demônios, mas por sorte, Al Gore encontrou-me. Queria me matar, mas logo percebi que ele estava puto com a situação de sua floresta. Culpando tudo e a todos, quando tive a ideia de oferecer minha ajuda para recuperar sua floresta. Conheço algumas pessoas, em geral alquimistas, que têm interesse na preservação de florestas e no uso de suas substâncias para fins humanitários, mas que não têm como financiar suas pesquisas. Elas também têm medo de entrar nas florestas, pois alguns druidas tinham má-reputação. Disse a ele que esses pesquisadores certamente o ajudariam a recuperar suas florestas se ele os auxiliasse em suas pesquisas filantrópicas. Além disso, disse que poderia ministrar a ele lições de direito ambiental para que ele melhor preservasse os interesses da floresta frente à sociedade, pois um dia chegariam homens maus, ignorantes, pecuaristas, plantadores de cana, etc. Disse que esses homens ocupariam tudo, de uma forma burra, irracional e prejudicial a todos… se não houver o Juízo Final antes, é claro. Ele aceitou. Daí conversamos mais e mais e ele acabou falando de você. Pedi que me levasse até você, pois estava preocupado. Ouvimos as explosões e o encontramos caído e ferido.

 

Com o passar do tempo, os sobreviventes se aproximaram da Santa Sé. Apesar disso, o necromante ainda não sabia o que fazer. Estava indeciso. Não poderia dar as caras justamente no centro da Igreja que tanto o perseguiu, mas precisava sair da floresta, precisava estar em uma cidade, em um vilarejo. Permanecia há dias naquele ambiente selvagem. Suas roupas estavam imundas e rasgadas. Alimentava-se de animais e de frutas apenas. Tomava o sereno da noite diariamente. Pensou em passar alguns dias nos vilarejos próximos a Igreja, mas seria arriscado. Como ele não chamaria atenção depois de tudo aquilo? Onde deixaria Penélope? Prometeu a ela que não a deixaria nas mãos da Igreja, mas não sabia como chamar o arcanjo Miguel para devolvê-la. Se a levasse para alguma cidade, provavelmente o anjinho viraria atração de circo pelas mãos de homens inescrupulosos ou seria usado por algum religioso. Pensou se ainda deveria cumprir a missão atribuída pelo arcanjo… mas já estava tão fora da rota por ele determinada… Deveria procurar Esmeralda no Inferno ou voltar para Satânia e esquecer tudo o que havia passado até então? A segunda hipótese não era atraente e a primeira era tentadora. Penélope sabia como entrar no Inferno e sabia onde ficavam as almas. Poderia resgatar Esmeralda se tivesse sorte.

 

Os viajantes ouviram, repentinamente, patrulhas de anjos ruflar as asas sobre eles, o que passou a ser constante à medida que as horas passavam. Apesar de estarem acompanhados de Penélope preferiam ficar na surdina. Pediram a ela que não levantasse voo e que se abstivesse de chamar seus pares. O necromante ainda tinha fixo na memória o ataque dos anjos na entrada da floresta, o poder do arcanjo Miguel, o de Menadel e a cena de carnificina de anjos. Apesar de estranhar o pedido e achá-lo engraçado, ela assentiu. Sabia que em breve veria seu pai, pois aqueles anjos que patrulhavam a região, em voos rasantes, eram soldados dos arcanjos, e não das potestades. Resolveu ficar quietinha até ver seu “papa”.

 

Com mais algumas horas de caminhada, as grandes torres da catedral da Santa Sé finalmente podiam ser vistas.

 

vaticano caminho

 

Vocês não vão me mandar para lá, né? – Perguntou Penélope, convicta de que ouviria um não bem grande.

 

O necromante disse que não e que eles iriam para o Inferno destruir o Grimório, como desejava seu pai. Penélope os guiaria, o que a deixou feliz. Era melhor ir para o Inferno do que ir para a igreja. O pequeno anjo explicou que passando pela Santa Sé, rumo ao norte, havia uma pequena entrada. Aproveitando um momento que ficou sozinho com o anjinho, o necromante perguntou:

 

– Onde ficam as almas mortas, lá no Inferno?

 

As que foram julgadas no Purgatório, as suicidas ou as que foram levadas pela mão de algum demônio? – Perguntou com naturalidade Penélope enquanto se ocupava de uma flor que estava nascendo torta.

 

– As que foram levadas pela mão de um demônio. – Respondeu imediatamente o necromante.

 

Que tipo de demônio: comum, soldado raso, capitão, coronel ou general? – Seu tom continuou natural, como se aquela conversa fosse apenas mais uma, sem qualquer importância. O anjinho parecia não perceber a ansiedade de Lúcifer.

 

demônio wallpaper

 

– O demônio é Lúcifer, o Lúcifer do mal, o chefão. – Penélope levantou uma das sobrancelhas, sem, contudo, olhar para o herói, tentando entender o que ele queria dizer. O necromante se sentiu estúpido, falando algo teratológico. Ela nunca tinha ouvido falar em tal hipótese. Não era do feitio de Lúcifer matar pessoas. Isso era algo que deixava para seus subordinados. Até onde sabia, o orgulho de Lúcifer era muito grande para matar diretamente qualquer ser vivo que estivesse abaixo da primeira hierarquia angelical ou que não fosse um de seus demônios generais que houvesse cometido algum erro crasso. Lúcifer era perfeito demais para se preocupar com almas insignificantes. Lembrando disso, Penélope respondeu:

 

Lúcifer não leva pessoas para o Inferno, ele acha todo mundo insignificante. Ele manda que outros façam o serviço sujo. – Respondeu concentrada na flor que teimava em ficar inclinada.

 

– Eu o vi matando uma pessoa! – Exclamou Lúcifer.

 

Seguiu-se um silêncio momentâneo.

 

Esmeralda é sua namorada?

 

O necromante ficou surpreso com a pergunta, lembrando-se que não havia respondido a pergunta sobre Esmeralda dias atrás. Talvez Penélope fosse mais esperta do que aparentava.

 

– Sim, onde ela está? – Perguntou suplicante.

 

Não sei. – Respondeu indiferente.

 

A caminhada continuou e finalmente, do alto de uma colina, aos pés de uma montanha e ao cabo da floresta, puderam ver em todo seu esplendor a Santa Sé. Era um castelo gigantesco, branco, com grandes torres, cobertas por abóbadas douradas, muros imponentes, vitrais enormes fulgurosos e grandes varandas. Aquele edifício era o mais belo, o maior e o mais reluzente que o necromante já havia visto. Era uma visão maravilhosa que transmitia paz e imponência. Nem as nuvens negras que pairavam parcialmente sobre a Santa Sé tiravam seu esplendor. Os viajantes seguiram em direção ao castelo admirados, menos Penélope que olhava a construção com desdém. Hermes disse que pelos seus cálculos a construção possuía cerca de um quilômetro quadrado de extensão e altura em torno de 250 metros. “Muito dízimo foi cobrado e muitas chibatadas foram dadas para construí-lo”, pensou o ladino, alheio ao fato de que a Igreja também não pagava impostos e de que ela financiava seus empreendimentos vendendo indulgências (havia até uma tabela formal com o tipo de crime e o valor correspondente de cada perdão) e com a venda de lotes de nuvens no Paraíso. Conforme desciam a longa colina, cuja vegetação ficava rala à medida que avançavam, os três (Lúcifer, Hermes e Al Gore) sentiam-se cada vez mais inferiorizados diante da retumbância da construção, o que revela o caráter arrogante e patrimonialista da classe religiosa. Eram compelidos a sentir que seus desejos e anseios eram pequenos e desimportantes.

 

Minha casa é maior e mais bonita. – Disse Penélope e todos olharam para ela incrédulos.

 

palácio

 

Antes que adentrassem o campo aberto e seguissem rumo aos portões da Santa Sé, por onde teriam que passar para entrar em uma das entradas do Inferno, os três homens ponderaram a situação, pois Al Gore se separaria do grupo. Ele havia levado todos para junto da Santa Sé como havia prometido e seguiria as instruções de Hermes, que indicou onde estariam os ambientalistas interessados na conservação da floresta e que se sentiriam felizes em ajudar o druida a cuidar de sua casa. Al Gore ouviu rumores de que algumas outras florestas eram derrubadas por homens inescrupulosos, cujo clã era conhecido como bancada ruralista, estreitamente ligados à Igreja e suas pautas conservadoras. Estes homens integrantes da bancada ruralista substituíam as florestas por campos de pecuária e de monoplantações. O druida também tinha conhecimento de que determinados reinos construíam grandes barragens em rios para obter energia. Com a força das águas, moinhos eram movidos, mas neste processo, a vegetação era muito afetada pela absoluta falta de planejamento. Esses reinos, amalgamados de forma espúria com empreiteiros, sempre davam um “jeitinho” de conseguir a aprovação de projetos ambientais inviáveis ou caros demais à vegetação.

 

Como Hermes explicou ao druida, não adiantaria que ele estivesse disposto a dar a vida pela floresta. Alertou que ele nada poderia fazer sozinho, que precisaria de muitas mãos e que precisaria conscientizar as pessoas. E Al Gore viu o que tinha acontecido à sua floresta; sentiu sua fragilidade diante das forças celestiais e demoníacas que varreram vastas áreas de sua floresta. Teria que deixar sua vida de reclusão e isolamento. Antes de partir para sua própria jornada, Al Gore deu um longo abraço em todos e disse que sua floresta estava à disposição caso precisassem ficar escondidos. Ele os protegeria da melhor forma possível em situação de risco. Dito isso, virou-se, subiu a colina e após alguns minutos sumiu.

 

– Pois bem. – Disse Lúcifer à Penélope. – Onde fica a entrada para o Inferno?

 

Antes que ela pudesse responder, Hermes, sempre muito atento, pediu silêncio. Viu, embora estivesse muito longe ainda da Santa Sé, algo que o chocou. Não acreditava no que seus olhos viam. O necromante, depois de encará-lo, olhou para a mesma direção. Penélope se abaixou e começou a suar. Estava com medo. E se fossem descobertos?

 

Na frente da Catedral, estavam se reunindo milhares de demônios. Havia um aglomerado grande de criaturas infernais acampadas e, ao longo do horizonte, via-se uma fileira enorme de mais soldados demoníacos a caminho do edifício. A hipocrisia teria acabado?

 

exército

 

Vamos fugir, vamos fugir! – Dizia desesperada e em voz baixa Penélope, com a Lança do Destino já entre as mãos. – Eles vão nos matar! 

 

Não era apenas a aglomeração de demônios que incomodava e impressionava aquelas três pessoas. O que causava angústia e perplexidade é que não havia sinais de violência no lugar. Nada indicativa que a Catedral esteve sob ataque em momento algum. Os vilarejos próximos à Santa Sé também estavam em pé e emitiam fumaça, como se todas as casas estivessem cozinhando milhares de quilos de comida para satisfazer os milhares de demônios e outras criaturas que estavam ali. A princípio, o necromante e o ladino pensaram que a Igreja fora corrompida e que havia passado para o lado dos demônios. Todavia, logo ouviram e viram um esquadrão de dezenas de anjos liderados por um arcanjo rasgar o céu sem fazer qualquer ato hostil contra os demônios e sem que estes se incomodassem.

 

Os heróis se entreolharam perplexos. Não sabiam o que dizer. Olharam para Penélope que também não compreendia o que estava acontecendo. Ela apenas se limitou a dizer:

 

Rafael

 

Repentinamente, pousaram em torno dos três de forma rápida e impetuosa, vários anjos. Penélope foi recolhida por um deles e o necromante e o ladino foram dominados bruscamente. Jogados raivosamente no chão. O Grimório caiu a uma curta distância do portador. Instintivamente, Lúcifer tentou alcançar o livro, esticando o braço, todavia, um pé pousou violentamente sobre sua mão.

 

Prendam-no. – Disse a voz dona do pé.

 

O necromante não conseguiu olhar diretamente para o ser, pois foi posto de joelhos e logo apagou em decorrência da forte pancada que recebeu na nuca.

 

Acordou com um forte cheiro de enxofre atacando seu aparelho respiratório. A primeira imagem denunciou que estava próximo aos esplendorosos portões da Santa Sé, mas isso não foi o que lhe chamou mais a atenção. Sem mais, sem menos, viu-se em meio a vários demônios. Muitos eram asquerosos e eram de todos os tamanhos e formas, com chifres ou sem chifres, com ou sem rabo. Alguns se agrediam gratuitamente, outros treinavam e outros uivavam. O necromante tentou se mover, mas estava preso, acorrentado pelas mãos e pelos pés junto a um tronco cortado de árvore. Assustado, olhou para os lados e procurou pelo ladino e por Penélope, mas só viu Hermes caído e desacordado. Ao lado dele, estava um demônio, com uma pequena espada, fuçando os pertences do amigo. Provavelmente, a criatura procurava algo de valor. O necromante sentiu inúmeros corpos mortos de animais e de pessoas no lugar e pensou em atacar, mas sabia que seria impossível sobreviver. Havia muitos inimigos. Olhou para o céu em desespero: sua jornada, o Grimório, Penélope e… Esmeralda. Devia ter desistido antes, quando pôde.

 

Seus movimentos, ainda que ínfimos, chamaram a atenção daquele demônio que mexia nas coisas de Hermes. A besta se aproximou e então Lúcifer pode vê-lo melhor. A pele era marrom-avermelhada, tinha grandes narinas, o rosto estava deformado, a boca recheada de dentes pontiagudos e de um líquido gosmento, os olhos eram amarelos e a língua se dividia em duas na ponta, como uma serpente. De compleição magra, e vestido com trapos sujos, a impressão que passava era a de ferocidade lúgubre. O olhar da criatura era incisivo e violento. Via-se ódio em seu olhar. A espada pequena brandia intensamente, enquanto o demônio examinava, em silêncio, o necromante. Ainda manejando habilmente a pequena espada, como se com ela brincasse, perguntou:

 

O que você tem de valor?

 

O necromante demorou um pouco a responder. Estava com medo, mas também estava irritado, estranhamente irritado. Tomou coragem e respondeu:

 

– Nada, idiota!

 

O demônio, furioso, ergueu a espada para dar cabo da vida do necromante quando inúmeros animais da floresta atacaram o agressor. Tão rápido quanto o ataque das feras, Lúcifer sentiu suas mãos soltas. As correntes que o prendiam ao chão foram quebradas pela força destrutiva e irresistível das garras de um urso gigante. Logo, o necromante atirou para todos os lados suas esferas verdes de energia e levantou os animais e homens mortos da região para a batalha. A rapidez com que fez isso o surpreendeu. Estava muito poderoso. Entretanto, os demônios eram inúmeros. Os seres mortos manipulados pelo necromante estavam sendo trucidados violentamente pelos adversários. Os animais que foram salvá-los foram encurralados. Alguns demônios já haviam tomado a rota usada pelos animais para resgatar os heróis e a bloqueado. E o número de adversários não parava de aumentar. Estavam cada vez mais próximos e pareciam estar excitados com a batalha e com a perspectiva de derramamento de sangue.

 

Basta! – Trovejou uma voz imponente. Todos os demônios recuaram imediatamente. Suas espadas foram embainhadas. Em poucos segundos, estavam todos os agressores se afastando rapidamente. O necromante olhou para trás e viu um demônio gigantesco que transbordava poder e que lhe era familiar. Ao lado dele estava o arcanjo Miguel e, abraçado à perna dele, Penélope, com o rosto horrorizado. Embora com o olhar vítreo nas figuras conhecidas que se posicionavam na sua frente, o necromante notou, ao seu lado, que o urso se transmudava: era Al Gore.

 

Vossa Senhoria descumpriu minhas ordens! – Bradou o arcanjo Miguel. – Deveria pagar com a vida!

 

arcanjo miguel 3

 

– Você mentiu para mim! Você não queria que…

 

Silêncio! – Voltou a gritar o arcanjo e lançou uma descarga de energia que fez o necromante voar alguns metros.

 

Adoro dramas. – Comentou o grande demônio em meio a gargalhadas.

 

– Por quê? – Tossiu. – Por quê? – Indagou o necromante, levantando-se com dificuldade.

 

Ele nos será útil. – Disse o demônio de voz trovejante para Miguel. – Basta que aprenda a usar o poder contido no Grimório. – O demônio estalou o dedo e por detrás dele três freiras e um padre apareceram. – Levem-no para a Santa Sé. – Continuou a falar, agora para os quatros membros da Igreja. – Ele deve estar pronto em uma hora.

 

Lúcifer resistiu ao toque delicado das freiras servis que já pretendiam levá-lo. Olhou para Al Gore e seus animais, bem como para Hermes, caído no chão, ainda desacordado, não obstante o grande alvoroço que acabara de ocorrer. Eles estavam em meio a muitos demônios e diante do arcanjo Miguel, aquela figura desprezível e traiçoeira. Não queria deixá-los sozinhos, porém contra o arcanjo e contra aquele demônio gigantesco nada poderia fazer.

 

Nada acontecerá aos teus amigos. Em breve eles estarão ao teu lado. – Disse o arcanjo Miguel, com seu peculiar ar de arrogância. O demônio, ao lado dele, sorriu satisfeito. Parecia ser mais confiável e bondoso do que Miguel, embora fosse uma montanha de músculos, com pele avermelhada, chifres enormes e olhos inteiramente negros e ameaçadores. O ar que o envolvia sempre estava tremeluzindo e seguia em direção ao céu. Era ar quente. Sua pele o esquentava. A besta deixava pegadas negras no solo por onde passava. A relva, as pedras e tudo que a sola do pé daquele monstro tocava enegrecia e emitia fumaça, como se fosse carvão sendo queimado.

 

Até mais… mestre. – Disse ironicamente o demônio, rindo da situação.

 

Sim!“, o necromante pensou. Sabia de onde conhecia aquele demônio. Ele havia lutado contra Menadel na floresta, antes de Lúcifer ser libertado.

 

Dentro do templo, sentiu-se mais calmo. Talvez fosse o esplendor e pompa da construção daquele recinto que pregava a humildade e valores imateriais para os outros. Esqueceu dos olhares ameaçadores dos demônios com que acabara de lutar. Havia ferido gravemente dois deles na pequena rebelião. Lembrou do olhar do demônio que o interrogara e que o ameaçara de morte – sabia que estava em sua lista negra.

 

A construção era enorme, aparentando ser maior por dentro do que por fora. Também era muito alva e silenciosa. Não se ouvia ali o alvoroço que a assembleia de demônios fazia lá fora. Nas paredes brancas e nas imensas colunas, havia várias figuras de anjos, arcanjos e outras belas criaturas que jamais vira. Nem imaginava o que podiam ser. Era muita ostentação. Havia cruzes folheadas a ouro por todos os lados, bem como outros móveis cravejados por belas pedras preciosas, tais como safiras, rubis, diamantes e… esmeraldas. Lembrou-se de sua amada. Até então tinha esperança de encontrá-la, mas esse sentimento estava se esvaindo, da mesma forma que a areia dentro de uma ampulheta. Não sabia o que o demônio quis dizer com a expressão: “ele nos será útil”. Não sabia o que deveria fazer e também não sabia se estaria disposto a fazê-lo. Seria mais uma vez manipulado?

 

Andou por um longo corredor que o levava a um trono. Nele estava sentado um demônio magro, quase anorexo, feio, assimétrico e que não aparentava ter grande poder. Ao lado dele estava o Papa da Igreja, de pé, em posição servil. Tal imagem deveria causar surpresa ao necromante e a qualquer pessoa que a visse. Era uma circunstância singular e que nem em sonhos seria factível, porém, para o necromante, aquilo já não lhe causava mais estranheza. Logo, as freiras e o padre o deixaram a sós com o demônio e com o Papa.

 

– Você deveria queimar aqui dentro. – Falou o necromante ao demônio, sentindo sua irritação voltar.

 

O demônio riu da suposição do necromante de que as dependências de qualquer igreja construída por mãos humanas tivessem o poder de queimar demônios. Após a risada, jogou o Grimório diante do necromante. Então, o Papa ordenou a Formol:

 

– Leia. – No rosto daquele Papa, não se via a face de bondade construída e forçada, própria dos Papas. O necromante estranhou. A Igreja, instituição que supostamente representava Deus na Terra, mesmo sem que houvesse algum instrumento procuratório para tanto ou mesmo na ausência de qualquer pedido, ainda que informal, da divindade, deveria, em tese, ser dirigida por alguém bom. Com efeito, um mínimo de coerência entre a bondade defendida pela Igreja, mas não praticada, e as atitudes do Papa deveria existir.

 

Papa Bento XVI

 

O demônio que estava ali olhou diretamente para os olhos de Lúcifer. Era como se fosse uma ratificação da ordem do Papa, porém era algo muito mais profundo e ameaçador. Algo que não podia se recusar. O olhar lançado pelo demônio causava terror e ansiedade, mas ao mesmo tempo impelia o necromante a ler o livro.

 

Desde que o pegara, o necromante não tinha folheado suas páginas. Ao longo de sua jornada atribulada não teve muito tempo para lê-lo, mas esse não era o único motivo: a princípio estava desinteressado, porque pensava só em Esmeralda. Depois vieram as confusões de Penélope que implicaram grande dispêndio de tempo e de atenção. Por fim, com a morte de São Paulo, o medo de abrir o livro ou de vê-lo matar seus amigos, impediu-o de compulsar suas páginas. Essas foram as razões que aventou em seu íntimo para não tê-lo consultado antes. Agachou-se e leu os curtos excertos. Por mais de meia hora, o livro ficou aberto sobre o colo de Lúcifer.

 

Muitos trechos estavam incompletos. Havia muitos rascunhos também. Trevinhas analisou os mapas, mas nada compreendeu. Os textos tratavam de histórias pregressas. Fábulas infantis e simplórias, que nada diziam, como as da Bíblia, embora não fossem tão desagradáveis quanto aquelas do livro dito sagrado. Seria um diário? Estava escrito em muitas línguas, sendo que a maioria era desconhecida pelo herói. Era uma linguagem abstrata, sem sentido e sem pé nem cabeça. Os mapas, pouco elucidativos, referiam-se a lugares desconhecidos para o necromante. À medida que lia, sentia medo e aflição. Seria questionado? Por que deveria ler o livro? Seria morto caso não tivesse uma boa leitura e compreensão ou se não fosse inteligente o bastante para entender aquelas poucas palavras? No entanto, um texto em particular chamou sua atenção:

 

CONTINUA…


Lúcifer e a conspiração dos arcanjos – Parte 8

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Obra protegida por direitos autorais.

Vide parte 7

 

 

“Sim, o esnobe não queria admitir. A ideia de minha autoria foi vetada sem qualquer fundamento. Presidente honorário de merda! Óbvio que se o Purgatório fosse suprimido haveria almas de péssima qualidade para consumo, mas os cálculos atuariais que fiz, que são precisos, revelam que a relação custo-benefício valeria a pena. A grande maioria das almas são aptas para consumo. Para que passar por todo o processo de triagem? Que mal haveria se uma ou outra contaminação ínfima ocorresse? Burocrata de merda! O importante é que haja variedade e estoques suficientes de almas para a população sem os entraves administrativos. Não importa que eu tenha que estimular guerras na Terra nem a matança desenfreada de animais. A Humanidade é a maior praga que já surgiu por aquelas bandas. Os terráqueos se proliferam como ratos. Ocupam tudo, como se fossem água depositada dentro de um objeto continente. Por onde passam deixam um rastro de sujeira e poluição. Qual o problema em matar seres que ao longo do tempo tendem a pender para a individualidade? Encheremos nossos estoques e controlaremos a população humana de forma a atender a crescente demanda do Paraíso. Além disso, não sujaremos as mãos dos seres celestiais com o sangue vermelho, impuro. Apenas jogaremos uns contra os outros. Precisamos usar melhor nossos principados na Terra! A função deles é intervir na política humana. Acredito que estejam ociosos demais lá”.

 

almas

 

Quando terminou de ler este excerto, o necromante se sentiu estranho. Percebia algo diferente dentro de si. Algo que tomou seu corpo por dentro, a partir de seu centro de gravidade. “Sim“, pensou, “o livro me deixa mais poderoso“. Depois da aflição de suas primeiras reflexões, sentiu que durante a leitura seus poderes evoluíram e que a área de percepção de seus sentidos havia aumentado. Passou a sentir as carcaças de animais, de homens e de demônios mortos fora dos limites da construção que o abrigava. Sentia-se capaz de controlar mais cadáveres ao mesmo tempo. Sentia que poderia invocar mais almas de uma vez. Enfim, sentia-se mais poderoso e mais confiante. O medo de ser considerado burro tinha se esvaído. Ergueu a fronte e olhou confiante para o Papa.

 

– Ótimo. – Disse o Papa contente e aliviado. – Você está pronto para sua missão.

 

O necromante, então, ouviu muitos passos e sussurros atrás dele. Virou-se. Viu muitas pessoas e muitos anjos. Hermes estava ali e parecia estar bem, ainda que ao lado dele estivessem dois demônios. Ele não estava com medo. Aliás, conversava animadamente com os dois anjos caídos, que não pareciam tão demoníacos como a maioria. Ao lado dele estava o arcanjo Miguel, visivelmente contrariado, lançando olhares furiosos para todos, em especial para o demônio ao lado do Papa. Penélope acompanhava o pai. Ela estava muito assustada e com medo. Havia outro arcanjo ao lado de Miguel, com um olhar igualmente grave e odioso. Parecia estar brigado com o pai de Penélope. O demônio gigante fechava o grupo montado em uma besta, que se assemelhava a um tigre, com o tamanho de um mamute, em permanente estado de combustão, cujas chamas ardiam e provocavam grande calor no imenso ambiente.

 

Abigor, querido, há quanto tempo. – Disse o demônio sentado no trono.

 

abigor_demonio

 

Abigor, portando o seu grande estandarte, sorriu. Lançou uma imensa bola de fogo, que havia se formado na sua mão livre, contra a parede que estava atrás do trono. Tal esfera flamejante passou por cima do necromante, do demônio e do Papa. Sucedeu-se uma grande explosão e o Papa foi atirado para longe. Toda a estrutura ruiu. Assentada a poeira, um imenso buraco na parede apareceu. A fissura guardava uma paisagem inóspita e hostil. O céu era avermelhado e havia pontos se movendo nele, como se fossem grandes aves voando a quilômetros de distância. A terra era negra e ao longo do horizonte existiam focos de incêndio e rios de lava derretida. Havia estacas com caveiras nela penduradas e uma ou outra pessoa em chamas correndo e gritando ao fundo. O cheiro de enxofre era intenso, mas não insuportável. Ouvia-se ventos zunindo misturados a gritos de pavor. Havia também um grande palácio ao fundo do cenário, no topo de uma colina. Era uma visão desoladora e soturna. Todavia, o que mais chamou a atenção do necromante era que o Inferno não passava de um deserto. Era apenas um local malcuidado, hostil e fedorento, mas plenamente habitável se houvesse uma terraformação ou mesmo uma mera administração razoável. Agora entendia o que queriam dizer uma parte dos seguidores da Igreja quando se referiam ao Inferno: era apenas um lugar sem Deus. Embora Deus, segundo essa mesma corrente fosse onipresente, ali, por algum motivo, não estava. De todo modo, para o necromante, e com base nos preceitos religiosos da própria Igreja, havia mais coerência e razoabilidade na ideia de que aquele local diante dele fosse um lugar sem Deus, e não um lugar de sofrimento eterno, como era ensinado covardemente para crianças, com o fim de que elas se tornassem tementes a Deus e tomassem parte no rebanho sem a possibilidade de maiores questionamentos, transformando-as na próxima geração de marionetes temerosas de desagradar os pais repressores, apesar de se dizerem críticas já na idade adulta.

 

Pois bem. – Disse o demônio que sentava no trono. – Vamos! – Levantou-se e entrou no Inferno atrás dele. O arcanjo Miguel, por seu turno, chamou o necromante.

 

Tome! – Entregou-lhe sua espada, a “Retaliadora de demônios”. – Cumpra sua missão e depois proteja minha filha. Fuja imediatamente com ela. – O tom era de ameaça. O necromante sentiu que se acontecesse qualquer mal à Penélope, ele estaria morto. – E se me desobedecer de novo, eu mesmo tirarei tua vida. – Acrescentou Miguel.

 

espada-de-miguel

 

O anjinho estava nervoso e muito assustado. Portava uma espada e um colete dourado, estando armado para a batalha. Qualquer barulho ou movimento estranho deixava Penélope muito agitada. O outro arcanjo olhava Miguel com desprezo e quando o viu entregar sua espada ao necromante, a um humano, ficou estupefato, mas, ainda assim, nada disse, embora fosse fácil constatar que gostaria de blasfemar contra o pai de Penélope. A espada do arcanjo Miguel era prateada nas bordas e dourada no centro, bem como cravejada de inúmeras joias. Era pesada. Empunhando-a, o necromante sentiu uma paz interior muito grande. O cheiro de enxofre havia diminuído rapidamente e a perturbação que aquele demônio magro e aparentemente inofensivo havia provocado se mitigara ao empunhar a arma.

 

– O que está acontecendo? – Perguntou o necromante ainda sem nada saber.

 

O arcanjo nada respondeu. Hermes, pelo contrário, veio ao encontro do necromante e o abraçou.

 

– Está tudo bem com você? E esses demônios? – Sussurrou o necromante olhando para as criaturas que estavam logo atrás do amigo.

 

– Está sim. Estou ensinando a eles como enriquecer sem precisar roubar e matar ou abrir igrejas em cada aldeia humana. Matando e roubando eles jamais conseguirão grandes fortunas. Abrindo mais igrejas, manterão a civilização humana atrasada e pobre, o que ocasionará limitações insuperáveis à pretensão de enriquecer. Expliquei como poderia funcionar alguns institutos que ao longo dos anos bolei para enriquecer: a letra de câmbio e as instituições financeiras. Isso será muito útil para eles enriquecerem e darem segurança às pessoas que precisam de um lugar seguro para depositar seu dinheiro e de uma forma segura e rápida de negociar… mas isso, é claro, se a humanidade não for destruída, o que, me parece, depende muito de você.

 

– O que você sabe? Diga-me! – Não se conteve o sempre contido necromante.

 

Vá! – Ordenou o arcanjo desconhecido ao necromante. – Quando a hora chegar, tu serás instruído de como proceder. – O mesmo arcanjo empurrou levemente o anjinho que estava petrificado de pavor. O fato incomodou muito o arcanjo Miguel que quase explodiu de raiva.

 

Então o necromante partiu e, atrás dele, Penélope, tremendo e empunhando sua pequena espada, a “Contos de princesa”.

 

Bem-vindos ao Inferno. – Disse o demônio que havia sentado na cadeira do Papa. O necromante percebeu que aquilo se tratava de um portal, um portal para o Inferno! Seria uma das várias entradas indicadas por Penélope? Ela não havia mencionado esta passagem. Talvez não a conhecesse. Assim que passaram pelo portal, o buraco aberto na parede da Santa Sé era, no Inferno, um buraco aberto no pé de uma montanha, como se fosse um “buraco de minhoca”. Causava estranheza ver aqueles que eles deixaram para trás. Eles ainda estavam dentro da Igreja, tão perto e tão longe.

 

Logo apareceram três cães infernais. Os animais lembravam aqueles que Abigor montava, entretanto eram muito menores, do tamanho de cavalos e com a aparência de lobos, mas não pegavam fogo. O demônio-líder saltou no primeiro e partiu em disparada. O necromante, receoso, fez o mesmo. Nos animais havia pelos longos no pescoço, como se fossem crinas equestres, e neles se segurou Lúcifer, pois percebeu que os bichanos atingiam altas velocidades. Aquelas bestas infernais corriam como guepardos – o demônio que seguia à frente era balançado impiedosamente. Penélope, ainda assustada, olhou para trás e viu seu pai amargurado do outro lado da passagem. Miguel acenou, ordenando que ela fosse atrás do demônio, olhou ameaçadoramente para o necromante e virou-se, sem olhar para ninguém mais. Penélope bateu asas e voou até o monstro que a levaria. Seu pai lhe dissera para não voar e não sair de perto do demônio até o necromante cumprir a missão.

 

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Abigor gargalhou.

 

Os três correram em direção àquele palácio que se via no horizonte. O necromante nunca viu Penélope tão assustada. Ele já havia presenciado o medo de seu anjo da guarda quando a filha de Miguel descobriu seu verdadeiro nome; também já havia experimentado seu ódio e sua alegria. Também sabia como era o sentimento de culpa da garota celestial, mas jamais viu a filha do arcanjo naquele estado deplorável. Por que ela estava naquela missão? Estava mais pálida do que alguns dias atrás quando descobriu o verdadeiro nome do herói, ostentando um branco mais branco do que o dos anjos. As janelas da alma de Penélope estavam fundas e bem abertas. A garota não falava, não respondia às perguntas do necromante e não soltava a “Contos de princesa” de sua mão. Apenas olhava diretamente para o demônio que estava com eles. Seria ele tão mau assim? Seria tão perverso ou poderoso? Lúcifer não sentia qualquer poder ameaçador provindo dele. Pelo contrário, sentia que poderia acabar com o guia a qualquer momento e assim estava prestes a fazê-lo. Tiraria a verdade da boca dele assim que parassem e, então, partiria em busca de Esmeralda.

 

Para o necromante, o Inferno não parecia ser tão perigoso assim. Sentia-se menos oprimido ali do que na Santa Sé. Aliás, estava quase deserto. Estava abandonado. Lúcifer sempre achou que ele fosse um lugar pulsante e violento, povoado por demônios e almas expiando seus pecados… Ficou um tanto decepcionado.

 

Enquanto corriam velozes pelas pradarias mortas, os viajantes perceberam que a paisagem era monótona. O necromante notou muitas criaturas sinistras observando-os. Também viu muitos demônios caídos, mortos e mutilados. Batalhas ocorreram ali. Também viu uma ou outra criatura queimando e gritando, correndo aleatoriamente. Os invasores já estavam perto da entrada do palácio quando, repentinamente, o demônio-líder que indicava o caminho virou à esquerda e entrou por detrás de algumas pedras. Os animais que levavam o necromante e Penélope seguiram o mesmo caminho. Essa virada brusca fez Penélope emitir um gritinho. Estava praticamente abraçada no pescoço do animal. O necromante se aliviou ao vê-la ainda sobre o animal, mas se consternou com o estado patético do anjinho. Teria graves problemas psicológicos no futuro. A velocidade ali, atrás das pedras, para alivio de Lúcifer, era menor e, assim, Penélope não corria mais o risco de cair e de ser devorada por criaturas rastejantes de olhos famintos pelas quais passaram e passavam.

 

Sem a correria, o necromante pode notar melhor a paisagem. Havia muitos sinais de violência, corpos mortos, espadas quebradas e símbolos cabalísticos espalhados por todos os lugares. Naquele lugar não havia vida. Aridez total. O cheiro de enxofre se impunha constantemente. O calor era intenso. Corpos empalados, divididos ao meio, comidos, pendurados e presos a estacas faziam parte do cenário. O estômago do necromante dobrou inúmeras vezes. Queria manipular todos aqueles corpos e restos de corpos para longe, não só porque ele os achava repulsivo, mas por causa de Penélope. Entretanto, ela ignorava todas essas imagens, estando cada vez mais abatida, como se uma doença a estivesse consumindo por dentro, como se suas forças estivessem deixando seu corpo. Aquilo era estranho. Começou a duvidar de que ela tivesse visitado o Inferno várias vezes para brincar. Esse não poderia ser o problema.

 

Andaram por mais de uma hora, de forma lenta e silenciosa. Nenhuma palavra foi dita. Na frente, seguia o demônio, fazendo gestos e sinais para que não fosse feito qualquer barulho. Seguia ele por várias trilhas pedregosas e desertas. O necromante caminhava entre o demônio e Penélope. Fadigada, os olhos negros do anjo se fechavam voluntariamente. Segundos depois, eles se abriam e ela se repreendia por tê-los fechado. O ar de tensão, de certa forma, dominava os três. Perto da lateral do palácio, o necromante percebeu que na frente dele havia uma espécie de nuvem flutuante enorme ancorada, como se fosse um barco. Neste momento, o demônio-guia mandou que saltassem de suas montarias e disse que seguiriam a pé, abaixados. Adentraram o caminho ladeado por pedras e se esgueiraram por ele, quase deitados. Aproximaram-se mais do destino, que, segundo fazia crer os gestos do demônio, era o palácio. Já estavam quase ladeando o castelo, quando, por uma fresta, o necromante olhou novamente em direção à nuvem. Lá viu algo que o chocou. Não quis acreditar. Havia centenas, talvez milhares de anjos parados, como se guardassem a nuvem e como se estivessem esperando algo ou alguém. Dentro da pluralidade de criaturas celestiais, algumas, que estavam na proa da nuvem, chamaram mais a atenção, pois a estatura, as asas e a imponência delas eram iminentes; e dentre essas criaturas mais desenvolvidas, mais até que os arcanjos, uma chamou mais a atenção de Lúcifer. Será que era ele? Será que era Menadel? O que estaria um sem número de anjos e algumas potestades fazendo parados na frente daquele palácio? Era visível que o demônio que o conduzia queria evitá-los, embora não mostrasse qualquer medo. O demônio era extremamente frio e parecia saber exatamente o que fazia. Penélope, suja de terra preta e com pequenos filetes de sangue azul saindo dos joelhos, lenta e quase rastejando, continuava concentrada e tensa. Não fez qualquer menção de pedir socorro e não largava a “Contos de princesa”.

 

moloch-demonio

 

O que estava acontecendo? Era o que o necromante se perguntava. Qual sua missão? Qual a utilidade da coitada ali? Quem era aquele demônio de quem pretendia obter informações e depois matar? Por que o arcanjo Miguel fez aquilo com a própria filha? Onde estaria Esmeralda? E por que diabos aquelas atitudes estranhas dos arcanjos e agora das potestades? Qual o motivo daquela tolerância e daquela cooperação entre entidades que deveriam se excluir mutuamente? Até aquele momento, o necromante tinha claro na mente que os arcanjos tinham traído os serafins, mas, ao ver a nuvem-embarcação, já não tinha mais certeza de nada. O que faziam naquele castelo?

 

Ladeando os muros do grande palácio, o necromante esperava uma boa oportunidade para atacar o demônio e fazê-lo falar. Depois o mataria e tentaria conversar com Penélope. Extrairia alguma informação dela. Precisaria dar um fim naquilo e seria naquele momento, com a proteção e solidão que os muros do palácio proporcionavam… Tocou a espada para atacar o demônio, mas este virou-se repentinamente e indicou que ali havia uma passagem secreta. O necromante hesitou. Pediu, então, o demônio que se afastassem em silêncio. Puxou uma alavanca que parecia um adorno do muro e uma escada surgiu na parede. Subiram-na até alcançarem um corredor estreito. Estava tudo escuro e o ar era poeirento. O silêncio só era rompido por sons de objetos, talvez ossos, sendo quebrados por aqueles transeuntes sorrateiros. Desceram e subiram, viraram à esquerda e à direita. Por sorte, a “Retaliadora de demônios” do arcanjo Miguel emitia um brilho pálido e ao perceber isso, o necromante a desembainhou para que o ambiente ficasse mais claro. As paredes eram feitas de blocos de pedra, dando a impressão de que estavam em uma masmorra. Havia centenas de ossos margeando o caminho secreto, que se quebravam ao serem pisados, bem como muitas teias de aranha. Mais alguns minutos de descidas e subidas e várias voltas se passaram até que o demônio pediu que o necromante guardasse a espada. Estava chegando a hora. Deram mais alguns passos na escuridão. O necromante só ouvia a respiração ofegante de Penélope até que o estalar de uma trava se fez ouvir. Imediatamente, uma porta se abriu na frente deles. Uma luz avermelhada, emitida por várias tochas acessas, inundou a passagem secreta. Os três saíram e correram na ponta dos pés pelo grande corredor vazio. No fim dele, havia uma porta lateral da qual saia uma luz amarelada, como se fosse a luz solar. O demônio, na frente de ambos, parou a poucos metros da porta lateral. O necromante ouviu algumas vozes distantes, mas não pôde entender o que falavam. Antes que Lúcifer pudesse perceber, o demônio, aproveitando a distração, havia dominado Penélope e posto a espada que ela própria portava em sua garganta. O necromante fez menção de puxar a sua espada, dada pelo arcanjo Miguel, para atacar, mas o demônio fez um gesto com a mão pedindo silêncio, tapou a boca do anjinho e então começou a falar em tom baixo:

 

Escute, eu não farei nada de mal com ela, desde que cumpra sua missão. Preciso que se concentre. Use os poderes de necromante e encontre um corpo adormecido, sem alma, nas proximidades. É um corpo do qual emana muito poder. Use suas habilidades de controlar corpos sem vida e traga-o para mim, sem que as pessoas que estão na sala ao lado percebam. Depois disso, você e sua amiga podem sair daqui.

 

necromante

 

O necromante estava irritado, desconcentrado e ansioso para saber o que acontecia. Queria dar um basta em tudo aquilo. Penélope com sua própria espada no pescoço e impossibilitada de gritar, apenas chorava e esmorecia. Os olhos estavam fundos. Aquilo tudo era muito para ela. O necromante não tinha outra opção: não sabia onde se encontrava e estava prestes a perder sua amiga se não obedecesse.

 

Seguiu em frente, pé ante pé. Tentou sentir o tal corpo, mas não havia achado nada. A porta lateral de onde emanava a luz de brilho áureo estava ficando próxima. Não havia como ultrapassá-la e seguir no corredor sem ser visto. Então quase no batente da porta ouviu uma mulher agredindo verbalmente outra mulher:

 

Vadia! Vagabunda! – Ouviu um tapa sendo desferido no rosto de alguém. – Assim que eu tiver certeza de que Lúcifer foi derrotado, você será torturada pelo resto da eternidade por mim. Esse seu belo rosto será tostado no Lago de Fogo e seu corpo jogado em meio aos demônios sedentos por sexo. Eu ficarei vendo você ser estuprada pelo resto da eternidade. – Gargalhou.

 

Papai está acabado, sua velha rapariga. Metatron é o novo senhor do Céu e do Inferno. Se quiser, eu dou um jeito nela. – Riu a voz masculina.

 

Mammon está certo, Lilith, por que tanto receio para acabar com Esmeralda? Eu estou aqui e Lúcifer é covarde demais para me enfrentar abertamente, ele já está derrotado…

 

lilith

 

A mente do necromante se desligou do mundo ao ouvir o nome de Esmeralda. Será que era ela? A Esmeralda por quem se apaixonara? Precisava ter certeza e precisava vê-la. Mas voltou de suas reflexões, porque ouviu um gemido. Era Penélope. De sua garganta escorria o sangue azul dos anjos. Mais um pouco de pressão e o ferimento seria letal. Lúcifer precisava se concentrar para encontrar o maldito corpo e o trazer para aquele demônio que, ao perceber sua hesitação, encarava-o com fúria. Os olhos do parceiro malsinado ardiam em chamas. O necromante sentiu um frio na espinha, pois experimentava naquele momento todo o terror que jamais sentiu. Um poder enorme começou a emanar daquele demônio, que disse rispidamente:

 

O corpo, o corpo, eu preciso do meu corpo.

 

Sem entender nada, motivado pela possibilidade de ver Esmeralda e de salvar Penélope, alheio às brutalidades verbais que provinham da sala ao lado, Formol se concentrou o máximo que pôde e finalmente sentiu o corpo que estava, pasmem, na sala ao lado, próximo de onde partira a última voz que ouvira, a voz de Metatron.

 

Admirou-se por não ter percebido antes a presença desse corpo, que agora era tão clara e evidente. Algo, algum poder, bloqueava-o. Voltou-se para o demônio e disse, por gestos indicativos, que o corpo estava na sala ao lado. O demônio, sem soltar Penélope, resmungou:

 

Não era para o meu corpo estar ali. Maldito Metatron! Vilipendiou e profanou meu corpo. Eu te matarei desgraçado. Temos que ser rápidos! – Tomou a frente do necromante, ficou rente à porta, tanto que a luz dourada quase tocava sua pele repugnante. Pronto para invadir o salão ao lado, com Penélope ainda nos braços, continuou sussurrando. – Agora é tudo ou nada, entrarei correndo pelo salão. Faça com que o corpo venha até mim, o mais rápido que puder, senão todos morreremos. 

 

O necromante assentiu e pretendia reivindicar a vítima dominada por aquela criatura abjeta, quando o demônio gritou:

 

Agora idiota!

 

O demônio jogou Penélope para dentro do salão e correu. O necromante fez com que o corpo pretendido se levantasse rapidamente e fosse em direção daquela criatura vil:

 

Maldito!

 

Um forte clarão vermelho e amarelo saiu do salão, quase cegando o necromante que entrava na sala após ter cumprido o seu propósito. Milésimos de segundos se passaram. O necromante se recuperou e ingressou, esbaforido e pronto para tudo, no cômodo. Então veio o choque: viu o corpo que manipulara, de pé, com quase 3 metros de altura, portando uma enorme espada negra, com faixas cinzas, da qual emanava uma aura acinzentada. Era uma espécie de anjo perfeito, belo, extremamente evoluído e superpoderoso, com muitas e enormes asas. Um poder que jamais sentiu estava ali naquele salão opaco, morto e avermelhado. Como se isso não bastasse, em frente a ele, estava outro ser igualmente belo, perfeito e poderoso, também brandindo sua espada, dourada com sete estrelas na empunhadura, emanando uma aura branca. Sentiu que um e outro eram iguais em tudo, mas, paradoxalmente, antagônicos. Um clima de tensão mortal deitou sobre os dois e cada vez mais o necromante sentia o poder, no seu mais alto grau de pureza, emanar daqueles dois seres. Eles se odiavam e logo se chocariam, levando tudo e todos para a destruição. Percebeu também que a presença de um deles, a do corpo que movimentara a pedido do demônio, lhe era familiar: tratava-se da mesma presença que sentira na caverna; tratava-se de Lúcifer, só que agora muitas vezes mais poderoso.

 

lucifer

 

Olhou para um corpo estendido no chão logo a sua frente e aos pés do anjo caído. Era o demônio que estava junto a ele momentos atrás. Esse demônio se levantou lentamente e ainda atordoado. Então olhou para o lado e viu Penélope caída e desmaiada. Dirigia-se para resgatá-la, ao mesmo tempo em que a imagem do olhar terrível do arcanjo Miguel aparecia em suas memórias, quando ouviu, do outro lado do ambiente, alguém chamar seu nome. Era Esmeralda.

 

CONTINUA…

(Já foram 83 páginas de 191 escritas!)

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Lúcifer e a conspiração dos arcanjos – Parte 9

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Vide parte 8

 

– Formol, por que você demorou? Tire-me daqui agora! – Ela gritou peremptória. Ao virar-se Lúcifer a viu correndo para seus braços. “Ela estava mais linda do que nunca“, pensou o salvador, mas também viu que a mulher que agrediu verbalmente Esmeralda, a mesma de seus pesadelos, avançava para atacá-la pelas costas com uma adaga dourada cravejadas de diamantes. Lúcifer atirou nela sua esfera de energia verde. Esmeralda o alcançou e o abraçou. Ambos trocaram olhares significativos e se beijaram, porém sabiam que precisavam sair logo dali. O necromante pegou Penélope nos braços, olhou mais uma vez para a situação e viu o início de uma árdua luta entre Lúcifer e Metatron. O demônio que estava com ele, por seu turno, preparava-se para atacar Mammon, que ainda estava assustado com tudo o que acontecia. À primeira vista, Mammon chamou bastante atenção do necromante, mas depois o herói achou o inimigo fútil em razão do grande número de joias, ouro, prata e outras bijuterias que portava em seu corpo arredondado e em razão do medo covarde estampado em seu rosto ao ver Lúcifer ali. Mammon não passava uma imagem de imponência nem de riqueza, mas sim de uma pessoa, ou demônio, superficial e fraco, diferente de Lúcifer, de Metatron ou de qualquer outra entidade celestial ou demônio que já havia visto. Lilith, o demônio que havia sido alvejado por Formol, estava se levantando irada – seu cabelo havia sido bagunçado. Esmeralda já estava correndo pelo corredor há um bom tempo. Só então o necromante notou que havia mais cinco mulheres-demônios na sala, todas seminuas e todas muito atraentes, mas com ódio estampado nas expressões. Elas se levantaram, mostrando as garras e os dentes vampíricos desenvolvidos, esperando apenas as ordens de Lilith. O necromante correu atrás de Esmeralda, carregando Penélope desacordada entre os braços.

 

– Onde está a saída? Onde está a saída? – Gritava desesperada Esmeralda.

 

No mesmo momento, o necromante sentiu que as sequazes de Lilith e a própria Lilith os seguiam pelo corredor. Penélope estava pesada. Seria facilmente alcançado. Deixou o anjinho no chão, disparou suas esferas verdes e desembainhou a espada de Miguel. Ele teria que aprender a manejá-la ali. Todavia, inúmeras explosões ocorreram. Elas vinham da sala onde estavam Metatron e Lúcifer e também do lado de fora do palácio. As paredes começaram a ruir. Uma grande explosão destruiu parte do corredor, o que fez com que pedras caíssem sobre as capangas de Lilith. As perseguidoras recuaram. Abriu-se um buraco para fora do palácio. Era possível sair por ali. O necromante se voltou para chamar Esmeralda, mas ela já estava passando por ele para fugir pela abertura. Então Formol pegou o corpo inerte de Penélope e foi atrás da companheira.

 

Lá fora, o caos reinava. Arcanjos contra anjos, demônios contra demônios, anjos contra demônios. Todos haviam ficado loucos?

 

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– O que está acontecendo? Onde você estava todo esse tempo, Formol? Por que demorou tanto, hein? Eu quase morri nas mãos daquela depravada! – Queixava-se Esmeralda enquanto descia os escombros do palácio. O necromante não sabia o que responder, então disse:

 

– Eu achava que seu corpo tinha sido…

 

– É, não foi, Lúcifer mandou minha alma direto para o palácio dele e depois mandou que um de seus demônios leais reconstituísse meu corpo.

 

Para o necromante isso não fazia muito sentido. Talvez não tivesse entendido, visto que estava cansado em razão de tudo o que havia acontecido e em razão do peso extra que transportava e que tirava suas energias enquanto ambos corriam a esmo e desviavam de ataques, raios, explosões e partes de corpos que subitamente sobre eles caíam.

 

– Ele queria que eu fosse mais uma de suas esposas. Lilith ficou com ciúme e queria acabar comigo. Só não o fez, porque estava com medo da volta de Lúcifer. Passei dias sendo humilhada e maltratada. Quando Metatron chegou e disse que Lúcifer não seria um problema, perdi as esperanças. Só que ainda sim Lilith estava com medo da volta de Lúcifer.

 

O necromante ficou de olhos abertos. Não dava para acreditar nessa história, mas Esmeralda nunca mentia e não gostava de ser contrariada. Achou melhor acreditar.

 

Estavam correndo pelos jardins de ervas daninhas do palácio quando os muros entraram em colapso. Por todos os lados apareciam demônios. Eles estavam invadindo as muralhas do palácio e destruindo tudo. Explosões ribombavam por todos os lados, sem qualquer lógica ou constância. Não havia mais para onde correr. Formol e Esmeralda estavam encurralados. Porém, do nada, sofreram um forte impacto nas costas, Penélope havia caído dos braços do necromante, mas logo estavam todos voando em meio ao fogo cruzado, nos braços de três arcanjos: Miguel, Rafael e aquele que parecia odiar Miguel. Em volta deles, o necromante percebeu a presença de mais quatro arcanjos que abriam caminho entre os demônios e anjos que ousavam atacar o grupo. Os agressores eram inexoravelmente eliminados. Os poderosos arcanjos eliminavam os inimigos de tal forma e com tal habilidade que era fantástico vê-los. Os sete alados formavam uma verdadeira esquadrilha no ar, treinada, harmônica e letal. Durante o voo, o necromante viu um exército de milhares de demônios marchar em direção ao palácio. Percebeu também que todos os anjos estavam batendo em retirada. Sentiu, outrossim, vários poderes à espreita em algum lugar do Inferno. Essa constatação lhe causou estranheza, pois não participavam do contexto caótico de lutas. Depois sentiu uma grande massa de poder em fuga deixar o palácio: Metatron. Porém, sua atenção na movimentação dos poderes no Inferno foi interrompida bruscamente. O arcanjo Miguel, que carregava o necromante, gritou desesperado:

 

Uriel, não!!!!!!!!

 

Imediatamente, o resgatado olhou para frente. Um dos arcanjos foi pego por vários demônios. Lúcifer pouco pode ver. Assistiu apenas Uriel e seus inimigos se atracarem violentamente e caírem na terra árida. Centenas de demônios o encobriram.

 

Não! – Grunhiu consternado o arcanjo Miguel. – Não, isso não está acontecendo… Maldito seja Lúcifer. – “A quem ele se referia?“, perguntou-se o necromante preocupado.

 

Precisamos voltar para resgatá-lo. – Clamou Rafael em claro sinal de desespero.

 

Não! Ele já está morto! Tu sabes disso! – Advertiu o arcanjo que sempre olhava impiedosamente para Miguel.

 

Os seis arcanjos remanescentes continuaram sua trajetória, rumo ao portal. Nada poderia ser feito por Uriel.

 

arcanjos

 

Em seguida, o necromante sentiu o poder de Lúcifer explodir triunfante. O líder do Inferno havia espantado Metatron de seus domínios. Imediatamente, uma chuva de fogo e meteoros começou a cair. Os arcanjos tiveram muito trabalho para desviar das bolas de fogo que caíam aleatoriamente do céu do Inferno. Vulcões ao longo do horizonte, outrora adormecidos, despertaram triunfantes, expelindo línguas de lava fumegantes e nuvens piroclásticas quilométricas. O grande portal estava se aproximando. Os fugitivos precisavam sair dali o mais rápido possível, pois uma onda de fogo de milhares de metros de altura havia sido lançada por todos os lados a partir do palácio onde se encontrava o senhor do submundo.

 

Entraram pelo portal encravado no pé da montanha e saíram no interior da Santa Sé. Voaram rapidamente para fora do templo. A onda de fogo chegou e adentrou a Igreja, derretendo as toneladas de ouro que nela existia. Toda a catedral gigantesca caiu em ruínas e tapou com os escombros aquela entrada para o Inferno.

 

Enfim, os três conseguiram fugir do Inferno e de Lúcifer, mas a um alto custo. Um arcanjo havia sido abatido e morto: Uriel.

 

Droga! Droga! Estamos perdidos! Aquele traidor, ele não esperou, ele não esperou. Vou matá-lo com minhas próprias mãos. Vou atirá-lo no Lago de Fogo! Desgraçado! – Gritava ajoelhado o arcanjo Rafael, esmurrando o chão, após ter soltado Esmeralda na terra firme.

 

Havia esse risco, o de trocarmos um anjinho imprestável por um de nós. Todos estávamos cientes dele. Uriel morreu como um arcanjo, lutando, ainda que sua missão já tivesse sido cumprida. – Disse o arcanjo que carregava Penélope. – Ele jamais escondeu nada de nós. Ele era o mais honrado de todos nós. Era o mais leal de nós. – Olhou com desprezo para o arcanjo Miguel a quem eram dirigidas as amargas palavras.

 

O arcanjo Miguel ficou furioso. Pousando, largou o necromante no chão e pegou sua espada.

 

Gabriel, dê minha filha agora! – O arcanjo Gabriel, desdenhoso, entregou Penélope para Miguel. – Estou cansado de tuas indiretas e provocações. Eu errei, não minha filha. Não deixarei que tu a envolvas nessas loucuras novamente. Não tenho culpa pela morte de teu filho e Uriel não foi coagido em momento algum. Se precisar, matar-te-ei agora!  

 

Venha covarde!

 

Miguel ameaçou atacar, mas foi detido por uma exclamação.

 

– Já chega! – Gritou Esmeralda. – Eu quero saber o que está acontecendo aqui.

 

Gabriel apontou sua espada, chamada “Uma mensagem para ti”, para o rosto de Esmeralda e disse com desprezo:

 

A futura prostituta de Lúcifer não tem o direito de se dirigir aos arcanjos, muito menos de ordenar que expliquem alguma coisa. Sinta-se feliz por ter sido salva por Rafael, o misericordioso. Se fosse por mim, tu, filha de Klepoth, a depravada, estaria morta.

 

Esmeralda o olhou com ódio. Por um minuto, o necromante acreditou que ela viraria um demônio. O olhar da moça era colérico, lembrando muito os olhos de vários demônios que tinham estado na frente dele.

 

mulher-brava

 

Basta! – Disse o arcanjo que logo conheceriam como Samuel. – Acredito que eles tenham o direito de saber o que está acontecendo, em especial Lúcifer, que libertou Satã de sua prisão e o levou até seu corpo. Jofiel, amigo, explique a eles o que acontece e qual é nossa situação atual.

 

O necromante sentiu algo estranho dentro de si, que logo identificou como vergonha. Era verdade, tinha libertado o rei dos demônios e entregado de lambuja seu corpo. Não quis olhar para Esmeralda, porque ela também já sabia seu nome verdadeiro. Estava acabado. Mas Esmeralda pareceu não se incomodar com os sentimentos de seu companheiro. Estava mais preocupada com a menção à sua mãe. Como Gabriel sabia quem era a mãe da pedra preciosa? Fazia tantos anos e ela mal se lembrava da genitora, que a abandonara ainda quando criança. Jofiel, ignorando as preocupações do casal, passou a relatar o que outrora havia acontecido.

 

Metatron é o Senhor do Paraíso. Foi o último serafim a surgir, porém não demorou muito para demonstrar seus inigualáveis poderes. Em pouco tempo, tornou-se a criatura mais festejada, bela e poderosa dos céus. Nem os serafins mais velhos podiam com ele concorrer. Ao perceber isso, autoproclamou-se Deus Honorário. E o sistema de rodízio de serafins no poder perdeu a relevância, embora se mantenha formalmente até hoje. Vivíamos uma ditadura velada, na qual as velhas instituições foram mantidas, sem, contudo, qualquer eficácia. Não havia como questioná-lo. Ele se considerava perfeito e, apesar do bom governo e da perfeição com que conduzia as coisas, não havia liberdade de expressão. Todavia, ao mesmo tempo em que o governo de Metatron se consolidava e que as vozes dos poucos que ousavam questioná-lo eram caladas por meio do ostracismo, surgiu, entre os querubins, um novo ser: Lúcifer. É importante dizer que, como naquela época, os querubins fazem parte da primeira hierarquia angelical como os serafins e os tronos, mas são considerados seres de segunda grandeza, abaixo dos serafins. Em que pese a tomada de poder por Metatron e da sua consolidação, Lúcifer fazia o impossível acontecer. Superava em dons e poderes os serafins, praticamente se igualando a Metatron. Criaram-se muitas expectativas em torno dele. Muitos quiseram que ele assumisse o cargo máximo do Paraíso. Metatron, contrariado e aconselhado por alguns serafins, permitiu que excepcionalmente um querubim fosse Deus, concedendo, então, a presidência honrosa a Lúcifer. Tal cargo, com o tempo, desagradou aos dois: Lúcifer não queria ser subordinado, mas naquele momento era melhor do que ter que desafiar Metatron, e este estava contrariado não só pelo fato de um querubim ter tanta influência na sociedade celestial, mas também porque aquele cargo quebrava aquilo que considerava perfeito. O querubim queria fazer inúmeras mudanças e interveio diretamente na Terra, rogando praga em povos que não acreditavam em Deus, por exemplo. Também estimulou guerras e perseguições religiosas entre os povos, pois mais fáceis de serem desencadeadas, porque baseadas na irracionalidade. Metatron o advertiu. Disse o serafim que Lúcifer deveria ter sua aprovação antes de tomar qualquer atitude, pois não aceitava que as mãos angelicais fossem maculadas com a cultura e sangues humanos. Lúcifer, é claro, não gostou, até porque era tão arrogante e orgulhoso quanto Metatron. O clima ficou tenso entre eles e cada vez mais as divergências e entreveros entre os dois seres mais poderosos do Paraíso se tornaram comuns. Metatron sentia sua autoridade ameaçada, principalmente quando Lúcifer quis alçar um querubim como sucessor dele e acabar com a presidência honorária. Metatron, então, destituiu Lúcifer do cargo de Deus Honroso e o expulsou do Céu. Todavia, o anjo caído era extremamente popular e um terço dos anjos o seguiu. Foram para um local conhecido como Inferno, onde anjos outrora expulsos haviam se refugiado. Metatron ficou furioso com a debandada, não acreditando no que havia ocorrido. Um terço dos anjos de uma vez?! Era o que repetia exaustivamente em seu âmago. Para ele, isso significava uma rebelião. Teria que acabar com Lúcifer antes que mais anjos o seguissem, mas sabia, por mais difícil que fosse admitir, que não conseguiria fazê-lo sozinho, sem riscos e em condições paritárias, pois suas forças eram equivalentes. Pensou em construir um muro ao redor do Paraíso, mas não foi necessário. Em uma emboscada surpreendeu Lúcifer, que depois de muito lutar, mesmo na forma de espírito, pois fora de seu corpo naquele momento, foi aprisionado no Grimório, que era seu diário, e jogado naquela caverna da floresta Malaica. O serafim líder também puniu todos os anjos que haviam aderido à causa de Lúcifer, infectando-os, como se fosse uma maldição. Transformou os seguidores de Lúcifer em demônios com aspectos deploráveis. Após isso, as regras no Paraíso recrudesceram. Metatron se tornou mais tirano, embora ainda mantivesse a rotatividade no cargo do poder executivo, conforme consagrado pelo direito consuetudinário, que como bom conservador apreciava, e criou uma sociedade militarizada e hierarquizada. Ela foi dividida em castas e, com isso, membros de uma hierarquia não podiam se misturar com membros de outra hierarquia. Depois de alguns séculos, nem mesmo entre os degraus da mesma hierarquia podia haver uniões. – Samuel olhou com pesar para Miguel e Penélope e depois para Gabriel. – A situação era desesperadora. Não havia liberdade e sem ela não há vida. Muitos tentaram se revoltar, mas ninguém era poderoso o suficiente para desafiar Metatron e seus leais aliados. Por séculos, muitos pensaram em Lúcifer como um libertador, nas mudanças que pretendia promover e na ideia do livre-arbítrio que havia pregado. Ele, mesmo preso, dava sinais de grande poder, inclusive tentando o filho do Deus honorário que estava na Terra. Talvez por isso, Lúcifer jamais foi esquecido no reino do céu. Todos sabiam que um dia ele se libertaria de sua prisão, mas não sabiam quando, nem mesmo Metatron, que apenas tomava as devidas precauções para prorrogar o máximo possível a volta de seu desafeto. Sabendo da possível volta de Lúcifer, que poderia ocorrer a qualquer momento, alguns descontentes conspiraram e fizeram um plano. Pretendiam derrubar Metatron usando Lúcifer assim que este viesse à vida novamente. Ajudariam o anjo caído a ficar forte e a lutar de igual para igual com Metatron. Ambos se anulariam e, fracos, após batalhas, poderiam ser jogados pelos conspiradores no Lago de Fogo, de onde, em tese, não poderiam escapar. Assim, a divisão entre anjos e demônios teria fim e a liberdade voltaria a reinar no Paraíso.

 

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– Uau. – Comentou desinteressada Esmeralda que dividia seus pensamentos entre a narrativa de Jofiel e as lembranças das duras palavras do arcanjo Gabriel. Há muitos anos não via sua mãe. A moça lembrava vagamente de seu rosto e seu pai dizia que ela era idêntica à mãe, tão bela quanto. Todavia, o pai jamais deu maiores explicações sobre a personalidade da mãe e sobre as causas que motivaram seu desaparecimento. Limitou-se a dizer que ela era uma grande feiticeira e que daí derivava seu poder sonoro. Conhecia sua mãe por Maria, mas Gabriel a chamou de filha de Klepoth, como se a conhecesse de longa data. Será que realmente se conheciam? Teria uma conversa com o arcanjo. Chamá-lo-ia de Gabriel, o grosso.

 

Lúcifer refletiu por algum tempo. O plano dos arcanjos estava quase dando certo, mas era extremamente arriscado, tendo altas possibilidades de dar errado. E se um deles fosse abatido rapidamente? E se não lutassem? Poderiam muito bem se autopreservarem e optarem por manter a atual divisão entre o Céu e o Inferno, ficando cada um no seu quadrado. O necromante resolveu não expor seus pensamentos; entretanto, acreditava que deveria existir uma opressão muito férrea para que um bando de seres celestiais tomasse medidas tão desesperadas, que provavelmente matariam milhares de anjos e anjos caídos. Resolveu, então, indagá-lo sobre outra questão:

 

– Agora eu entendo muitas coisas que estavam escritas no Grimório, mas se os arcanjos são os conspiradores, uma coisa não faz muito sentido.

 

O quê, caro Lúcifer?

 

– Enquanto você contava a história, lembrei que São Paulo o acusou de dar o alarme para a Igreja, para que ela fosse em busca dos necromantes…

 

Sim, fui, os arcanjos não são apenas generais, também são mensageiros. Não poderia desobedecer uma ordem direta de Metatron. No entanto, consegui retardar em alguns dias a ação da Igreja. Se eu tivesse cumprido imediatamente as ordens de Metatron, tu estarias morto e Lúcifer ainda preso.

 

– Como vocês saberão quando e onde ocorrerá a luta entre Metatron e Lúcifer? – “Se ela ocorrer“, pensou sem coragem de dizer sobre suas dúvidas. Não queria pôr em cheque a esperança alheia.

 

Nós saberemos, mas enquanto nossa hora não chega, teremos que aguardar. Nossas tropas estão escondidas esperando o momento certo para atacar.

 

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– O que eu faço com o Grimório?

 

Tu ficarás conosco até que o destino de anjos e demônios seja selado. Se nosso plano obtiver êxito, e temos convicção que no final venceremos, tu jogarás o livro no Lago de Fogo e estarás liberado dessa sina maldita. E… continue lendo o livro sempre que puder. – O necromante ficou com uma estranha sensação no ar.

 

De repente, das árvores surgiram ruídos. Havia alguém embrenhado na mata. Os arcanjos imediatamente desembainharam suas espadas cravejadas e engastadas de pedras preciosas. A tensão se abateu sobre todos eles até que um rosto magro, que lembrava a imagem de um roedor, e sorridente emergiu da floresta:

 

– Lúcifer, amigão! Você sobreviveu! – Era Hermes acompanhado de Al Gore e dos demônios que estavam com ele antes da busca no Inferno.

 

No Inferno.

 

Lúcifer, após ver a fuga de Metatron, olhou para seu reino e ficou copioso. Há dois mil anos o Inferno era um lugar dinâmico, repleto de fogo, vulcões e gêiseres. Quando reinou, havia ali muitas fontes termais para deleite dos anjos caídos, havia também grandes celeiros de almas e, apesar do ódio ao Paraíso, eram todos felizes. Mas depois de tanto tempo, o Inferno se tornou uma terra árida e abandonada. As almas vagavam a esmo por aqui e acolá. Seu palácio havia perdido todo o brilho e as masmorras onde se torturavam os anjos capangas de Metatron estavam desativadas. Pensou, então, no filho incompetente e na mulher burra que possuía. Metatron os tinha mantido ali justamente para que o Inferno entrasse em decadência e deixasse de ser uma alternativa ao Paraíso. Segundo Abigor, o mais leal general de Lúcifer, para Mammom eram dadas riquezas, que lotavam metade dos palácios, e para Lilith segurança e liberdade para que se relacionasse com qualquer ser humano ou demônio que quisesse. Ainda segundo o braço direito de Lúcifer, quase todos os generais e demônios haviam abandonado o lugar, porque jamais jurariam lealdade a Mammon, visto que o filho de Satã não passava de uma marionete do Paraíso. Dispersaram-se pelo mundo e passaram a viver entre os humanos. Após muito refletir, observando a paisagem desértica e o palácio parcialmente destruído, Lúcifer dirigiu-se a Lilith:

 

Minha querida Lilith, há quanto tempo. Tu estás linda, como sempre.

 

Amor, senti tanto tua falta. Continuo apaixonada por ti. Por todos esses anos guardei-me para ti e cuidei muito bem das tuas outras esposas.

 

Amanhã partirei para a guerra e tu partirás em busca de Esmeralda, filha de Klepoth, a depravada. Deverá trazê-la para mim. Prepare nosso leito.

 

Sim, senhor. – Disse enfurecida a esposa de Lúcifer.

 

Dirigiu-se então para o filho, Mammon:

 

O Inferno está uma bagunça, filho, e tu estás gordo; repulsivo. Fiquei sabendo que ganhou a alcunha de “avarento”. A visão que tenho de ti é patética, bobão. Um ser perfeito como eu deveria gerar algo melhor. Talvez a minha futura nova esposa consiga me dar um filho que dignifique minha pessoa, assim como Metatron tem um filho à altura. – Olhou rapidamente e desafiadoramente para Lilith. Voltou a encarar o filho. – Não sei como meus generais não te mataram. Será que Metatron tem alguma coisa a ver com isso? Não gostaria nada de ter um filho envolvido com o meu pior inimigo.

 

Eu não tenho nada a ver com ele, pai. Sempre fui leal a ti. Infelizmente não sou poderoso suficiente como tu para derrotá-lo. Não pude evitar que viesse até nossa residência.

 

Lúcifer, então, dirigiu-se ao demônio cujo corpo havia tomado para, com a ajuda do necromante, ludibriar Metatron, que estava à espreita em seu palácio, sentado em seu trono:

 

Moloch, quero que vigie meu filho. Qualquer atitude suspeita por parte dele, mate-o, imediatamente.  

 

Depois, partiu para fora do palácio e voou alto. Em torno do castelo, centenas de milhares de demônios estavam reunidos: alguns esperando a tão aguardada aparição de Lúcifer e outros torturando ou então se alimentando de anjos mortos. Do alto, Satã viu uma potestade sendo linchada. Desceu vagarosamente até onde seus súditos praticavam a barbárie. Prontamente os demônios que estavam matando o soldado celestial se afastaram. A potestade agonizava, estava estendida no chão e por todo seu corpo havia sangue azul escorrendo por incontáveis orifícios abertos por espadas e mordidas. A face estava parcialmente queimada. Os dentes estavam todos quebrados. Uma de suas órbitas oculares foi arrancada.

 

Aniel, a potestade preferida de Metatron e de Menadel. – Riu o algoz. Lúcifer pegou Aniel pelas madeixas e voou até ficar muitos metros acima do palácio.

 

Prezadas vítimas da ignomínia celestial, é chegada a hora da vingança. Por séculos fomos achincalhados e eu, por milênios, fui confinado em uma masmorra cruel. Fomos espezinhados, humilhados, expulsos de nossos lares, separados de nossas famílias e jogados neste lugar inóspito e soturno. O Paraíso nos foi negado e, como se não bastasse, Ele nos infectou, amaldiçoando-nos: de detentores de uma beleza sem igual, passamos a carregar conosco a vergonha da deformação. Passamos a ter corpos repugnantes e fétidos e a pecha de assassinos brutais e covardes. A fama de seres que ostentam a bandeira do mal e a responsabilidade por toda desgraça que se abate no Céu ou na Terra foram atribuídas a nós. Sim, nossa imagem se tornou repugnante, nossa história foi desvirtuada e nossos sentimentos ignorados e abafados. E por quê? E por quê?!?! Porque ousamos fazer um novo mundo, ousamos desafiar a ordem instituída, ousamos criar um mundo em que todos poderiam ser tratados de forma igualitária, onde os serafins não mandassem e desmandassem como bem quisessem. Sim, meus caros, nós nos tornamos flagelos, mas não por que somos ou merecíamos, mas porque Ele quis. Entretanto, nossa hora chegou. Depois de tanto tempo, não mais nos calaremos, não mais sofreremos, nós venceremos, retomaremos nossa dignidade e nos vingaremos… O Paraíso cairá, as chamas invadirão o reino do Céu e nós eliminaremos nossos inimigos. O caos reinará e Metatron morrerá!

 

Com sua espada negra, cortou a cabeça de Aniel. O corpo caiu sobre a multidão de demônios que em segundos o retalharam e sumiram com as partes. Então Lúcifer, portando a cabeça de Aniel, bradou:

 

“Citius”!!!!!!!!!!

 

Ao que a massa enlouquecida de demônios respondeu:

 

HAU!!!!!!!!!!!!!

 

“Altius”!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

 

HAU!!!!!!!!!!!!!!!!

 

“Fortius”!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

 

HAUIIIIIIIIIIIIIIIIIII

 

Marchemos irmãos, marchemos rumo ao Céu! Destruam tudo; destruam todos! No final, venceremos!!!

 

exercito-de-demonios-wallpaper

 

No Paraíso:

 

Metatron chegou do Inferno furioso e esbaforido. Convocou imediatamente uma reunião de urgência em que todos os seres do Paraíso deveriam estar presentes imediatamente. Blasfemava em seu palácio presidencial com todos aqueles que estavam junto dele. Passou a olhar todos como possíveis traidores. Apenas seu filho, que se sentava à direita dele, teve coragem o suficiente para contrariar os mandos e desmandos de Metatron, como fazia há mais de 500 anos. Metatron, no entanto, sempre o ignorava, pois achava o filho fraco e condolente demais.

 

Pai, você sabe que eu não concordo com isso. Essa guerra não nos levará a nada. Perdoe e seja perdoado. Não comece uma guerra. Tu fizeste a ele o que não queria que fizessem contigo. Não cometa este erro novamente. Lembre-se de que nada que vem de fora pode te contaminar. O que te contamina é tua insegurança e tua desenfreada busca pela perfeição.

 

Metatron nada disse, pois estava pensando no discurso que logo faria e na traição perpetrada pelos arcanjos. A imagem deles atacando seus exércitos e a imagem deles fugindo covardemente do inferno causavam-lhe asco. Quando teria perdido o controle? Essa pergunta não saía de sua mente. A sociedade celestial era perfeita. Não havia atritos. Cada um tinha sua competência e seu conjunto de atribuições. Nada faltava a ninguém. Até os mais jovens anjos eram educados e treinados. Todos aprendiam desde o berço a serem cidadãos completos. Aprendiam cultura, artesanato, história e ciências naturais. Metatron, o grande, cuidava de todo o currículo. Os jovens faziam exercícios militares na escola de guerra do Céu. Eram arduamente doutrinados: seguiam a hierarquia, respeitavam os mais velhos, sabiam como agir em caso de ataques terroristas perpetrados pelos demônios e como agir em campo de batalha. Além disso, e o mais importante de tudo: aprendiam a glorificar o Paraíso como nação, cuidando para que nada saísse dos eixos. Metatron criou a sociedade mais segura que já existiu. Suas engrenagens eram perfeitas e nada fugia do controle. Ninguém precisava se preocupar com nada a não ser com seu trabalho, pois Metatron se preocupava por eles… e mesmo assim havia traidores? Ingratos! Como não havia percebido? Quando a perfeição se fora? Será que a força inexorável do tempo havia mitigado qualidades até então inabaláveis? Será que o tempo não respeitaria nem o mais poderoso imortal? Não, impossível! A perfeição estaria em tudo até o fim dos tempos. Os arcanjos tiveram ajuda. Não poderiam ter feito tudo sozinhos. Tinham informações confidenciais que não deveriam saber. Eles foram apenas os executores do plano para libertar Lúcifer. Mas quem seriam os mentores? Lúcifer tentou fugir inúmeras vezes de sua prisão e sempre fracassou, mas dessa vez ele conseguiu porque teve ajuda externa. Além disso, como Lúcifer sabia que não poderia entrar no Inferno como espírito, sob pena de ser descoberto? E como aquele exército de demônios foi formado em poucos dias, sem que houvesse qualquer tentativa de dispersá-lo por parte da armada celestial? Alguém da alta cúpula passou informações para o inimigo e as sonegou para Metatron.

 

Em poucos minutos, parte dos milhões de habitantes do Paraíso se reuniu na frente da sede do Governo de Metatron – todo ano ocorriam treinamentos para inúmeros tipos de convocações, emergências e manobras. Então, o titã voou para o centro da praça e, quando o silêncio daqueles que estavam sob ele emergiu absoluto, começou o seu discurso:

 

Compatriotas, fomos traídos! Uma conspiração de arcanjos libertou Lúcifer.

 

Oh! – Ouviram-se muitos murmúrios na praça central

 

Os arcanjos ajudaram Lúcifer a se libertar, reuniram o exército de demônios, ajudaram Satã a reaver seu corpo e, como se tudo isso não bastasse, meus caros, lutaram e abateram anjos, nossos pares. Neste momento, o exército de Lúcifer se reúne e se prepara para o ataque. É chegado o dia do Juízo Final. Devemos nos unir nesta época de crise, devemos lutar até o fim e combater as nefastas forças do mal. Nosso modo de vida, nossa cultura, a bondade e todo o esplendor que emanam do Céu devem prosperar e esmagar o mal. Como no passado, sairemos vitoriosos e, dessa vez, Lúcifer será derrotado para sempre. Queimará no Lago de Fogo por toda a eternidade e, com ele, irão todos os seus sequazes. No fim, a ordem vencerá o caos… Quanto aos traidores, Samuel, Ezequiel, Uriel, Miguel, Rafael, Gabriel e Jofiel, eles serão caçados até a morte. A licença para matá-los está irrevogavelmente concedida. – Pausa. – Infelizmente, soldados, não há apenas traidores entre os arcanjos, temo que haja mais traidores entre nós, inclusive nas altas cúpulas da nossa sociedade. Por isso, guardiões da luz, fiquem atentos, delatem os traidores, pois, do contrário, pereceremos.

 

Por fim, invocou o lema de guerra da sociedade que construiu e por todos foi seguido:

 

O que somos?… Amigos!

O que queremos?… Alvorada!

O que amamos?… O perigo!

O que tememos?… Nada!

Em posição!… Já!

 

O clamor se espalhou entre os anjos e, enfim, Metatron colocaria à prova toda a ordem social e militar que organizara meticulosamente ao longo das eras.

 

exercito-celestial

 

O choque entre a ordem e o caos estava prestes a acontecer.

 

choque-entre-o-bem-e-o-mal

 

CONTINUA…

 

Leiam A Nova Teogonia Livro I e Livro II, de minha autoria.

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Homenagem ao aniversariante de hoje

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Meu presente de aniversário (28/09). Letra da minha esposa! =)

*ler a letra que compus ouvindo a melodia abaixo* Adônis tem o sonho do sexo e despudor No torneio cósmico é o Hawking vencedor Nome de Teté escondendo o deus helênico Deuso da ciência tem o mágico…

Fonte: Homenagem ao aniversariante de hoje


Gaudí

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“Originário de uma família não muito abastada, Gaudí tendeu para a procura do luxo durante a juventude; no entanto na idade adulta e no final de sua vida essa tendência desapareceu por completo. Quando jovem aderiu ao Movimento Nacionalista da Catalunha e assumiu algumas posições críticas à Igreja Católica, no final da sua vida essa faceta desapareceu. Gaudí nunca se casou”.

Fonte: Gaudí


Independence day 2 – Crítica

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=)

Valeu a pena esperar 20 anos para ver a continuação dessa franquia. Espero que tenha mais uns quinze filmes!

Confesso que esperava algo mais violento e sombrio, com vários grandes discursos e com menos clichês, mas o filme é divertido e o Jeff Goldblum destrói (atuando) mais uma vez. Este segundo filme é parecido com o primeiro, mas com alguns elementos novos bem legais. Este filme observou as premissas do primeiro: solução criativa, e um tanto forçada, para impedir o fim da humanidade e mensagens positivas e otimistas.

Outrossim, exalta a ciência e a tecnologia para solução dos problemas e deixa bem claro que a devoção a uma figura, natural ou sobrenatural, deve ser derrotada.

É claro que não tem aquele impacto do primeiro filme e é claro que os novos personagens são bem meia-boca (Liam Hemsworth representa bem a falta de carisma), porém o filme é bem criativo e te faz pensar bastante. Abre inúmeras possibilidades.

Não gostei da forma de organização social dos aliens, pois não vislumbro de forma satisfatória como uma civilização daquele jeito possa evoluir tanto cientificamente e tecnologicamente. Também queria que fosse explorado melhor o tamanho da nave alienígena invasora, que tinha quase 5 mil quilômetros de comprimento. Poderia confrontá-la com o tamanho da Lua (fiquei esperando essa cena, mas ela não veio…) e colocar muito vento no planeta Terra. Também não curti muito a forma como a nave alienígena se abastece e seu combustível, mas até aí tudo bem.

Independence Day será uma espécie de Star Wars em nossa galáxia (se o Roland Emmerich não resolver destruí-la também como fez com a Terra), sem aquela baboseira sobrenatural da força, sem sabres de luz que vencem armas lasers e sem aquela bobagem dos inimigos ficarem esperando para serem mortos pelos mocinhos ou mocinhas, com a vantagem de ser contada desde o início.

Não vejo a hora do terceiro.

ps: confesso que estava torcendo para os aliens.

crítica independence day 2independence day 2 críticaindependence-day-2 crítica



Lúcifer e a conspiração dos arcanjos – Parte 10

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Vide parte 9

 

Enquanto os arcanjos deliberavam a alguns metros dali, Hermes foi colocado a par de tudo. Mais uma vez, seus olhos brilharam. A vontade era de indagar os arcanjos, mas, sabiamente, foi avisado por Lúcifer de que o momento não era adequado. A discussão entre os arcanjos, que começou em silêncio, em poucos minutos ficou tensa e logo agressões verbais, ironias e tergiversações foram ouvidas sem muito esforço por todos que ali estavam.

 

Uriel pode estar vivo! Pode estar preso! Pode estar sendo torturado neste momento. Precisamos fazer alguma coisa! – Alardeou Rafael, o carregador da cura, angustiado. – Lembram-se do lema? Juramos nunca esquecê-lo e sempre segui-lo. Um por todos e todos por um. – Declarou tenso e ainda ofegante.

 

Meu caro Rafael. – Ponderou Samuel. – Sei que queres salvar nosso amigo, sei que, assim como eu, ama o próximo, assim como uma mãe ama sua prole, mas não podemos nos esquecer de que estamos em uma missão. Renunciamos à nossa boa fama no plano celestial e jogamos tudo para o ar em nome de uma causa: livrar o Paraíso do totalitarismo. Uriel, ainda que esteja vivo, está fora de nosso alcance. Sozinhos não conseguiremos sobrepujar Lúcifer e seu exército. E acredito que assim como eu, como tu ou como qualquer um de nós, Uriel jamais admitiria que a missão fosse posta em perigo.

 

Miguel, tu que és o símbolo da esperança, tu que dentre os arcanjos é o mais destemido, ajude-me. Não abandone Uriel. Podemos entrar à espreita no Inferno. Vamos resgatar nosso irmão. Somos poderosos. Gabriel? Jofiel? Ezequiel? Amigos… um por todos…

 

Rafael! – Bradou Samuel. – Não torne as coisas mais difíceis. Amo Uriel tanto quanto tu, porém, por favor, precisamos seguir com o plano. Precisamos ficar de esguelha, reunir nossas tropas leais de anjos e aguardar a ordem de ataque dos nossos superiores. Lúcifer e Metatron são poderosíssimos e só podem ser derrotados quando estiverem…

 

Cale-se!!! Eu sei de tudo isso. Eu vou atrás de Uriel. Eu vou sozinho. Garanto que ele faria o mesmo por cada um de nós. Garanto que daria a vida por um amigo.

 

Rafael, não. – Disse serenamente Samuel, tentando acalmar e alcançar o amigo com as mãos.

 

Saia! – Gritou Rafael repelindo qualquer aproximação e apontando a espada, a gloriosa “Panaceia Universal”, que acabara de desembainhar, para a face de Samuel. Com a “Panaceia Universal” em riste, ameaçou: – Ninguém me impedirá! Quem tentar, morrerá!!!

 

Rafael bateu asas e voou. Os demais arcanjos ficaram estáticos. Jofiel, Samuel e Ezequiel olharam para Miguel, esperando que ele tomasse alguma atitude, como de praxe. Porém, a esperança se esboroou, pois Miguel nada fez. O sempre tempestuoso portador da “Retaliadora de Demônios” estava inerte e, de certa forma, indiferente.

 

Perdeu a coragem, Miguel? – Perguntou sarcasticamente Gabriel.

 

arcangel-miguel-3

 

Miguel sempre foi o mais determinado e voluntarioso dos arcanjos. Impulsivo e obstinado que era, sempre acreditou nos ideais do Paraíso e nos serafins. Lutou por milênios e matou inúmeros demônios e bestas ao longo de sua milenar vida. Foi condecorado e comparado a potestades em grau de poder, força e habilidade, mas, ao longo dos últimos séculos, aquilo em que acreditou perdeu o sentido. Chegou à conclusão de que o deus honorário era um delírio, um mero criador de ovelhas servis, que deveriam acreditar na palavra dele cegamente. Um verdadeiro Grande Irmão.

 

Miguel não cumpria mais seu dever por convicção, mas por obrigação, o que o tornava uma espécie de burocrata. Ele era apenas uma peça no sistema. A hierarquia imposta por Metatron, o deus honorário, consumia aos poucos a vontade dos habitantes do Paraíso. Segundo a propaganda, Metatron era onipotente, onisciente e onipresente, embora seus marqueteiros soubessem que onipotência e onisciência eram termos, logicamente, excludentes, o que revelava uma certa arrogância e desdém dos propagandistas. Com efeito, se o Deus honorário fosse onisciente, ele saberia o curso da história, não podendo mudá-lo, o que implica ausência de onipotência, sem contar que onisciência seria sinônimo de indiferença, desinteresse e mesmo da perda do livre-arbítrio do próprio Deus. Aliás, a ideia de onipotência era débil, visto que se alguém tudo podia, nada o motivaria a agir.

 

Miguel, que sempre acreditou na estrutura hierarquizada, chocou-se ao notar que fazia parte desse sistema opressor, que cultuava a imagem de um déspota e que se valia desse tipo de propaganda ilógica. Notou que ele próprio era um obstáculo à liberdade e à felicidade de seus semelhantes. Concluiu que militares deveriam apenas proteger os civis, não governá-los, pois nem todos queriam perder a liberdade em nome da hierarquia e das imposições de Deus. Aliás, Miguel achava civis que defendiam a ditadura criaturas bestiais, pois negavam a própria liberdade, sendo que, provavelmente, mal aguentariam um tapa na cara.

 

Mas como o arcanjo batalhador podia fugir de seu dilema? Ele era um guerreiro. Devia obediência aos superiores e nada podia fazer no âmbito político. Seu desespero, decorrente do choque entre o desejo de ver seu povo feliz, sendo, por reflexo, feliz, e a crença imanente a seu âmago na necessidade de cumprir as ordens dos superiores para dar segurança ao seu povo, foi exponencialmente aumentado quando casou e quando nasceu Penélope. Percebeu que a filha era o seu bem mais precioso, pensamento convergente com o de sua esposa, Sofia. Jurou que por Perséfone tudo faria, que sempre a protegeria e que daria liberdade para ela ser feliz. Entretanto, nesses últimos dias, ela tinha passado por tantos apuros…

 

Apesar de ambos estarem vivos, ela não estava em segurança. A guerra prometia ser longa e complicada, mas do que poderiam prever. Metatron e Lúcifer não haviam se matado no primeiro embate e não foram mortos pelos demais conspiradores como desejado e esperado. Como um sentimento de ódio impregnava os corações e mentes do Céu e do Inferno, como se fossem duas religiões antagônicas, um conflito de grandes proporções sem sentido estava a caminho. Provavelmente, o campo de batalha seria a Terra, o plano que separava o Paraíso do reino de Lúcifer. Milhares de inocentes terrenos morreriam, mas o medo maior dos arcanjos era de que anjos e demônios também morressem em larga escala e que os líderes da conspiração e os detalhes de seus planos fossem descobertos a qualquer momento. Penélope não estava em segurança e Sofia estava escondida, pois havia desertado do exército há pouco.

 

anjinho

 

E o arcanjo Gabriel? Outrora, fora o mais amável dos arcanjos, mas depois que perdeu o filho em combate, perdeu a razão de viver. Essa perda de sentindo de vida durou pouco tempo e virou amargura, quando soube que Miguel tirou, furtivamente, Penélope do exército celestial juvenil, entregando a filha a um estranho que deveria conduzi-la até a vastidão do Lago de Fogo, região gigantesca, a mais inóspita do Inferno, onde anjos e demônios condenados à reclusão eram jogados sobre a superfície lacustre para ficarem por toda a eternidade, imersos nas lavas, queimando, sem poder gritar, perpetuamente.

 

Miguel foi esperto e desobediente, e por isso ainda tinha a filha, mas ele, Gabriel, que cumpriu as ordens, não colocando o plano em risco, acabou perdendo o filho. Pretendia não chamar a atenção ao continuar a cumprir as ordens oriundas do Paraíso e, sinceramente, não acreditava que o exército juvenil também fosse mandado para a Floresta Malaica com o escopo de proteger a prisão de Lúcifer. Mas foi mandado, por mais histriônica, revoltante e repulsiva que fosse a ordem de mandar batalhões de crianças angelicais para a guerra, ainda que como um teste ou como uma forma de aprendizagem. Gabriel disso não foi informado e tinha certeza de que a informação chegada a Miguel.

 

Miguel entendia que essa ferida no coração de Gabriel jamais poderia ser fechada e que jamais seria perdoado por seu antigo amigo. Com efeito, ao tirar Penélope do exército nos últimos momentos, colocou todo o plano em risco e desrespeitou a ordem natural das coisas. Não tratou todos aqueles pequenos anjos de forma igual. Miguel não teve culhões e não avisou os parceiros de que faria isso.

 

Depois de ter a coragem questionada, Miguel fez menção de atacar Gabriel. Por um momento, o velho Miguel, guerreiro que jamais admitia um desaforo, havia voltado, mas o pai de Penélope recuou e disse ao desafeto, que já estava com a espada “Uma mensagem para ti” em mãos, que:

 

Partirei com minha filha para um local distante e encontrarei Sofia. Minha filha não mais sofrerá e não mais correrá riscos. Ficará apenas do meu lado. Adeus!

 

Com os olhos cheios de lágrimas virou as costas para o círculo de arcanjos e foi ao encontro de Penélope, que estava em outro círculo, junto a Lúcifer, Esmeralda, Al Gore, Hermes e aos dois demônios amigos do ladino: Burgos e Cupidez.

 

Todos os arcanjos ficaram perplexos. Miguel negando uma boa luta?

 

Covarde. – Sentenciou Gabriel. Seu filho poderia estar com ele, mas não estava.

 

Miguel diminuiu o passo. No seu entender, aquela palavra significava a pior das ofensas que poderia ser lançada a alguém.

 

É um covarde traidor mesmo! Traiu Metatron, traiu seu melhor amigo e agora nos trai. Está nos abandonando. Está com medo da guerra que ajudou a começar. Esconde-se atrás da própria filha. Você merece morrer, maldito!

 

Miguel parou.

 

Penélope, seu pai é um covarde trai… – Continuou Gabriel a espezinhar.

 

Basta! – Berrou Samuel.

 

O ar em torno de Miguel tremeluziu. Ele estava nervoso. Covarde? Traidor? Penélope envolvida nessa questão? Desembainhou o arcanjo a “Retaliadora de Demônios”. O ar tremeluzia cada vez mais forte. Os cabelos do arcanjo guerreiro esvoaçaram. A espada, em chamas, estava pronta para retaliar. Gabriel, cheio de ódio, preparou-se para o ataque. Resolveriam suas diferenças ali, naquele momento.

 

Venha covarde!!! Vou acabar com sua reputação agora mesmo. – Gritou confiante o contendor.

 

There is a winged angel who holds a sword in his hands

 

O embate era iminente, mas Samuel, brandindo a “Força interior”, pôs-se entre os dois amigos preparados para uma batalha de mil dias. Ezequiel e Jofiel fizeram o mesmo, desembainhando a “Fogo Violeta” e “Conhecimento é poder”, respectivamente.

 

Não haverá lutas entre nós. – Proclamou Samuel. – Miguel, tu és livre para partir, mas saiba que tu não tens este direito. Sei que não tens medo da guerra e que nunca nos trairia, mas, neste momento, abandonar-nos?!

 

Adeus. – Disse Miguel resignado.

 

Dirigiu-se a Penélope que apesar de todo o rebuliço ainda estava dormindo no colo de Esmeralda. Miguel aproximou-se dela e, tocando na sua face, acordou-a.

 

Filha, nós temos que partir. Diga adeus a teus amigos.

 

Adeus? – Perguntou bocejando. – Por quê? – Entorpecida pelo sono pesado de poucos minutos que experimentou enquanto Jofiel explicava todas as circunstâncias e motivações da guerra que estava se desenhando. O pequeno ser estava acometido pelo cansaço próprio de quem há pouco invadiu o Inferno ao lado de Lúcifer, o querubim caído, de quem foi refém de Satã e de quem participou de uma fuga alucinante do reino do mal. Por isso, Penélope não compreendeu a extensão da palavra adeus.

 

Nós vamos partir para um lugar melhor. Onde não exista perigo e onde tu possas ser feliz. Vamos para junto de mamãe, querida.

 

O Trevinhas vem com a gente? – Perguntou inocente e natural.

 

Depois de um longo momento de silêncio, Miguel respondeu tristemente:

 

Não, minha filha. Dessa vez não.

 

necromante

 

Os olhinhos de Penélope, já fundos e avermelhados pelo sono que o desgaste lhes impunha, marejaram. Estava fraca e suscetível demais a emoções. Ainda assim, levantou-se do colo quente e aconchegante de Esmeralda. Entendia pela expressão cansada de seu genitor que havia muita coisa errada. Hermes, ao ver a expressão chorosa de Penélope, também chorou. Al Gore ficou impassível. Os dois demônios faziam pequenos comentários inaudíveis, mas se via claramente que estavam desconfortáveis com toda aquela situação. Da fronte de Lúcifer, correram lágrimas. Ele estava muito comovido. Teria que se separar daquele anjinho danadinho. Foi abraçado por Esmeralda. Penélope, ainda com sono, com grandes olheiras e visivelmente extenuada, correu ao encontro de Lúcifer e o abraçou longamente. Talvez ainda se sentisse culpada pela adaga que fincou na barriga do necromante ou talvez a dor da separação decorresse das muitas coisas pelas quais passou ao longo dos últimos dias.

 

Filha. – Chamou o culpado Miguel.

 

Penélope, então, com os olhos marejados, olhou fixamente para o necromante e deu seu sorriso sapeca. O que ela planejava em sua mente fecunda? Logo, abraçou longamente o copioso Hermes, abraçou Al Gore e passou reto pelos dois demônios, Burgos e Cupidez – não gostava deles, pois só pensavam em dinheiro. Por fim, abraçou Esmeralda, mais por protocolo do que por vontade, o que, evidentemente, foi notado pela perspicaz mulher. Subiu no colo do pai, que decolou e logo desapareceu entre as árvores da região. Miguel não queria ser notado nem por anjos nem por demônios, por isso evitou os céus.

 

Um arcanjo morto, um arcanjo precipitado e agora um arcanjo covarde. Estou começando a acreditar que este plano todo foi a maior loucura da minha vida. – Disse o amargurado arcanjo Gabriel. – Nem sabemos como as coisas estão indo lá no céu. E nossos cúmplices? Podem estar todos mortos agora. Metatron sabe que fomos ajudados. Sabe que não poderíamos ter feito tudo isso sozinhos.

 

Gabriel, o que está feito é imutável. Lúcifer e Metatron estão em guerra, como queríamos, e a guerra não será longa, pois temos aliados poderosos dos dois lados. Além disso, baixas eram previsíveis e inevitáveis. – Asseverou Samuel tentando animar seus companheiros.

 

E Rafael? – Perguntou Jofiel.

 

Ele voltará. – Respondeu Samuel tentando ser otimista. – Continuemos com nosso plano.

 

– E qual é o plano? – Perguntou curiosa Esmeralda.

 

– Sim, qual é o plano? – Perguntou ainda mais curioso Hermes.

 

– E minha mãe? Quero conhecê-la. – Complementou Esmeralda impositiva.

 

Precisamos que o necromante fique conosco até o fim. Vocês devem partir. Não são necessários. – Sentenciou Samuel.

 

Vão embora! – Determinou Gabriel de forma rude.

 

Lúcifer sentiu que sua liberdade estava sendo cerceada por Samuel, uma criatura querida. Era como se estivesse casado ou em união estável. Esmeralda ficou indignada, tanto com Samuel, como com Gabriel, e, olhando para o necromante, exigiu algum posicionamento. Como Lúcifer nada disse, a bela falou:

 

– Quero saber onde está minha, mãe! Levem-me até ela.

 

Um silêncio ensurdecedor se fez ouvir entre os arcanjos.

 

– Falem covardes! – Determinou a mulher.

 

O arcanjo Gabriel se sentiu insultado e partiu para cima de Esmeralda.

 

Demoniazinha de merda. Deveria nos agradecer…

 

Gabriel, chega! Esmeralda, sua mãe está próxima a Amelot. Não está longe daqui. Ela é bem conhecida por lá. – Declarou o arcanjo Samuel.

 

– Venha Lúcifer, vamos atrás de minha mãe! – E Esmeralda pegou o parceiro pela mão.

 

Conduzido pela moça, o necromante não opôs resistência. Queria se livrar daquela bagunça que tornara sua vida.

 

Ele deve vir com a gente! – Disse peremptório Samuel.

 

O necromante sabia que não podia lutar contra os arcanjos, mas também sabia que não poderia deixar Esmeralda sair de sua vida novamente. Hesitou. O que fazer? Por que ainda precisavam dele? Olhava de soslaio para as criaturas celestiais enquanto era conduzido por sua dama. Gabriel alçou voo e pousou na frente de Esmeralda, de forma a impedir a evasão.

 

– Saía da frente! Lúcifer, diga alguma coisa! – Exigiu a mulher irritada. – Não deixe eles fazerem o que bem entendem com você! Eles precisam de você! Não podem carregar o livro. – Declarou a moça, exercendo uma função conscientizadora no necromante, o que era uma característica própria do gênero feminino.

 

Gabriel sacou a “Uma mensagem para ti” visivelmente irritado.

 

– Formol!

 

O que fazer? Pensou Lúcifer. Aceitar passivamente as ordens dos arcanjos como uma ovelha acéfala ou se mostrar independente, correndo o risco de ser golpeado e de ser levado à força?

 

ovelha

 

– Eu vou com ela. – Disse finalmente o necromante transpirando, em tom baixo, quase pedindo desculpas aos arcanjos. Ser corajoso era difícil, mas precisava ser coerente. Nada valia mais para Lúcifer do que sua independência e Esmeralda, pelo menos naquele momento, em que a paixão pela moça tomava conta de suas entranhas. Com efeito, a independência do necromante fazia com que ele não se ligasse a grupos religiosos ou políticos, não fazendo questão de agradar ninguém, a não ser as poucas pessoas que amava. A única convicção do necromante era de que deveria seguir o próprio caminho, por mais difícil que ele fosse, mesmo que suas convicções negassem as crenças de uma sociedade opressora e sem lógica; mesmo que tivesse que ficar sozinho.

 

Samuel lamentou a escolha do ponto de vista pragmático, pois isso tomaria tempo dos arcanjos, mas respeitou-a do ponto de vista moral. Com efeito, diferente do Deus da Igreja, Samuel valorizava pessoas corajosas, e não pessoas subservientes ou que viviam entocadas em templos pedindo perdão. Gostava de celestiais e pessoas que valorizavam a vida que tinham, pois trilhões de outros seres, possíveis segundo a genética, não nasceram e jamais nasceriam. Enfim, Samuel gostava de pessoas que não precisavam de um agente provocador que justificasse sua existência e conduzisse por meio de terceiros suas vidas, servindo de justificativa para tudo.

 

Gabriel, de outro lado, passou a caminhar em direção aos dois, ameaçadoramente. Queria impor sua vontade e não tolerava que seres inferiores o contrariassem. O futuro dos celestiais estava em jogo e o destino e as vontades dos seres humanos não deveriam ser considerados. Eram meros alimentos.

 

Espere Gabriel! – Alertou Ezequiel. – Venha cá. Samuel, por favor. – E chamou ambos os amigos para uma conversa particular. Depois de muita conversa e reclamações de Gabriel, Samuel se dirigiu ao casal.

 

Eu e Gabriel levaremos vocês dois até Klepoth, mas precisaremos voltar no máximo até amanhã. Logo, fogo cairá do céu e muitos anjos e demônios morrerão. Precisamos estar alertas. Precisamos agir rápido.

 

Esmeralda, Lúcifer, Hermes e Al Gore se sentiam incomodados com o tratamento de indiferença destinada aos humanos, mesmo sabendo que as almas humanas não passavam de alimentos para anjos e demônios. Às vezes, os efeitos da indiferença eram muito piores do que os do ódio.

 

Os arcanjos sentiam esse incomodo, mas o que podiam fazer? Precisavam se alimentar. Viviam em um plano superior, repleto de conhecimento científico, alheios ao misticismo que ainda reinava nos corações e mentes da maioria dos humanos.

 

Terá respostas às tuas perguntas. – Arrematou Samuel, dirigindo a palavra a Esmeralda.

 

– Eu vou com Samuel e o Lúcifer vai com Gabriel, o grosso. – Estabeleceu Esmeralda empertigada e sempre pensando muito rápido. Queria garantir distância do arcanjo amargo.

 

– Bom, então vamos. – Disse lentamente e sem convicção o descontente necromante que olhou de soslaio para os companheiros. Sentia que estava perdendo a direção da própria vida.

 

– Ei, e nós? – Exasperou-se Hermes.

 

Samuel olhou para o ladino com bondade, mas nada disse. Antes que decolassem, Hermes se adiantou e deu a seu amigo necromante um saquinho cheio de moedas de ouro e disse:

 

– Se cuida irmão.

 

O voo, assim como o de Miguel, foi raso, entre as árvores, abaixo das copas, e isso deixou as vistas do necromante e da bela cansadas. Às vezes, era melhor ficar de olhos fechados, pois a sensação de ver uma árvore enorme se aproximando sem poder fazer nada para desviar dela era horrível. Durante a curta viagem, passaram ao lado da Santa Sé destruída. Nela havia muitos vapores subindo e um cheiro forte de enxofre. Provavelmente, as tropas de Lúcifer reabririam aquela entrada e avançariam sobre a Terra rumo Paraíso.

 

Os alados subiram pelas montanhas Alpinas nas quais o frio era intenso. Preferiram passar pelo caminho mais difícil, pois por ali, provavelmente, não se encontrariam com inimigos. O frio intenso, embora por um curto espaço de tempo, trouxe grandes prejuízos à saúde dos transportados. Esmeralda ainda trajava sua roupa de cortesã, com poucos tecidos, e o necromante estava com seus pesados mantos negros rasgados. Ambos sofriam tanto que Samuel, menos suscetível às intempéries, resolveu, após breve parada, dar sua túnica branca para Esmeralda e protegê-la do vento gelado, colando-a, respeitosamente, junto ao seu corpo largo e musculoso e cobrindo, com as mãos gigantes, a cabeça da beldade, de forma que o vento frio e cortante não chegasse até ela diretamente. Ela nunca havia visto tantos músculos e seu espanto causou um leve ciúme em Lúcifer. Gabriel não fez o mesmo pelo necromante, como era de se esperar. Além disso, Lúcifer preferia passar frio, sofrer como um idiota, pois, ainda que o ar gélido e cortante estivesse acabando com sua saúde, o preconceito imposto pela Igreja contra o homossexualismo era tão arraigado na sociedade humana que mesmo nessa situação extrema falava mais alto do que o medo de uma possível hipotermia. Ninguém é uma ilha e mesmo bobagens tradicionais perpetradas por uma maioria “pegavam” na minoria independente, ciente de que a lembrança do futuro evitava tragédias.

 

lavagem-cerebral

 

Depois do pouso no destino, o arcanjo Gabriel foi criticado pela bela por essa falta de cordialidade para com um humano sujeito ao frio das altas montanhas, mas o arcanjo deu de ombros. Pouco se importou com os espirros de Formol e de sua pele quase azulada, repleta de camadas de gelo.

 

Ele que tome um placebo. – Disse debochado. Gabriel acreditava que a autoenganação humana era ridícula. Com efeito, os seres humanos acreditavam que placebos, curandeirismo e preces faziam alguma diferença na recuperação da saúde física, e não meramente psicológica. Sem falar que acreditavam em milagres, que nada mais eram do que a ocorrência de um evento aparentemente inexplicável.

 

Como resultado da falta de empatia de Gabriel, os viajantes precisaram parar por algum tempo para que o necromante se restabelecesse.

 

– Por que você não pediu que ele fizesse o mesmo por você, seu banana? – Indagou a moça irritada. O necromante ficou em silêncio.

 

Depois de parcialmente recuperado, os quatro se dirigiram às redondezas de Amelot e lá chegando, Samuel comentou:

 

Segundo meus informantes, Klepoth, a depravada, vive por estas bandas.

 

Ainda não creio que aquela depravada nos seja útil. Acredito que estamos perdendo tempo aqui. – Resmungou Gabriel de forma arrogante, lembrando as palavras de Ezequiel.

 

A depravada pod…

 

– Por que chamam minha mãe de depravada?! – Indagou indignada a moça, cortando Samuel, que ficou constrangido.

 

Bom, não a conheço pessoalmente, mas dizem que ela é um pouco diferente das demais criaturas.

 

– Como você pode falar mal de uma pessoa que não conhece?! E diferente em que sentido?

 

Bom. – Começou constrangido Samuel. – Há rumores de que ela…

 

Ela tem hábitos sexuais dos mais diversos e os pratica sem qualquer pudor. Em suma, ela é uma depravada. – Arrematou Gabriel friamente.

 

Esmeralda ficou sem palavras. Não conhecia sua mãe, mas… ela era sua mãe e isso deveria significar alguma coisa até mesmo para Gabriel. Seus olhos ficaram marejados. Queria matar Gabriel, de verdade. O que acontecia com ele? Por que tanta amargura? Por que queria sempre machucar e atingir as pessoas que estavam a sua volta? Olhou para Samuel buscando algum afago, alguma palavra amiga.

 

Logo, tu conhecerás tua mãe. Ela é um demônio muito poderoso. Era uma virtude no Céu. Tem a forma de uma lindíssima mulher. É idêntica a ti. Usa de sedução e tenta os homens para conseguir o que quer: conhecimento. Possui todos os conhecimentos de artifícios e ardis para subjugar homens, anjos e demônios masculinos, o gênero mais tolo. Conhece profundamente o rei das Trevas. Pode ser útil à nossa causa. – Disse Samuel.

 

– Um demônio?! – Perguntou em voz alta para si mesma. – Eu pareço um demônio?! – Ainda confusa e em tom baixo e introspectivo. – Por que acha isso?  Por que acha que ela pode nos ajudar? O que é uma virtude. – Perguntou curiosa e em tom normal de voz.

 

Não tenho certeza, mas acredito que ela tenha motivos para odiar ambas as partes em conflito. Pode nos dar proteção, informações e nos auxiliar em combate. Foi a principal concubina do Diabo por muitos anos após ser jogada na Terra por Metatron que repudiou seu comportamento sexual no Céu, ainda quando era muito jovem, milênios atrás. Como virtude, é capaz de armazenar e transmitir muito conhecimento, bem como tem o dom de orientar. – Explicou Samuel. – Foi de um conhecimento adquirido e transmitido por ela que delineamos um dos inúmeros planos para acabar com Lúcifer e Metatron.

 

Esmeralda estava estupefata com a história, mas orgulhosa de sua mãe. Era uma situação tão nova e aterradora que, apesar de ter muitas perguntas para fazer, não sabia por onde começar e também não sabia se era a hora para fazê-las. Samuel, diante da garota encabulada, sabendo que ela precisava de tempo para assimilar tudo aquilo e tudo o mais que veria e ouviria, determinou:

 

Lúcifer, vá até o centro da cidade e descubra onde reside a mãe de sua namorada. Rápido!

 

– Atchim!!!! – Foi a resposta do necromante, refém da coriza. Lúcifer, em razão da viagem truculenta com o arcanjo Gabriel, estava gripado. Sentia o ouvido doer, o nariz escorria cada vez mais e não parava de espirrar.

 

Em que pese a situação clínica do manipulador de almas, a observação de Samuel causou constrangimento em Lúcifer e Esmeralda. Namorados?! E o silêncio constrangedor reinaria entre o quarteto, com exceção, é claro, dos espirros e das fungadas do herói, se não fosse a reivindicação de Esmeralda.

 

– Eu vou com ele. – A garota não esperou Lúcifer falar qualquer coisa. Essa era a oportunidade dela. Teria mais liberdade com o amigo e poderia adquirir informações de outras pessoas sobre a mãe antes de falar com ela diretamente. Tinha esperança que falassem bem dela e que aquela história de “depravada” fosse uma idiotice celestial.

 

Samuel achou perigoso, mas talvez um auxiliasse ao outro, ainda mais considerando o estado de saúde do manipulador de almas. Gabriel sorriu desdenhosamente. Esmeralda não gostou da atitude de Gabriel, mas não brigaria com ele, pois nada adiantaria. Ele não iria mudar.

 

Lúcifer e Esmeralda seguiram para a cidade. O primeiro com roupas negras, surradas e rasgadas que mal cobriam o corpo. A segunda com roupas finas, semitransparentes e sensuais. Temiam que a inadequação de seus trajes chamasse a atenção de companhias desagradáveis: religiosos moralistas.

 

Por sorte, Amelot era uma grande cidade e tinha um grande centro comercial. Não teriam dificuldades em comprar roupas comuns. Usariam o dinheiro dado por Hermes. Assim, vestidos adequadamente, poderiam buscar de forma segura e reservada informações sobre o local onde Klepoth residia.

 

A cidade estava localizada aos pés da montanha, o que favorecia a defesa de ataques piratas e de outras cidades. Era uma região fria, muito em razão da altitude, que se elevava a cerca de setecentos metros sobre o nível do mar, e possuía inúmeras subidas e descidas. O seu terreno era irregular, o que, a princípio, impediria que uma cidade tão grande e próspera surgisse.

 

Em que pese a irregularidade do terreno, muito próximo à cidade, à sua frente, estava o mar e um grande litoral propício à construção e manutenção de portos, de onde partiam missionários para o novo mundo com o objetivo de evangelizar os nativos, fazendo-os esquecer de sua cultura e de seus deuses, oferecendo consolo e a vida após a morte enquanto a escravidão e a matança se desenvolviam de forma exponencial. Dizia-se que os nativos perdiam territórios em troca de Bíblias e que os missionários ganhavam terras ao entregarem livros sagrados. Do lado oposto ao litoral, estava um pequeno deserto que, ao ser percorrido, dava acesso a cidadelas próximas a uma grande cadeia vulcânica, cujo solo nas redondezas era propício ao cultivo de inúmeras culturas. Essas cidadelas alimentavam Amelot e eram abastecidas por produtos manufaturados oriundos do além-mar e do interior do continente, que ficava atrás das montanhas Alpinas, onde se encontrava a Floresta Malaica, a Santa Sé e inúmeras outras cidades grandes como Satânia. Em outras palavras, Amelot era um grande entreposto comercial.

 

Além do comércio, Amelot, até por ter sido erigida próxima à Santa Sé, era um centro religioso. Ali a Igreja reinava soberana. Detinha poder sobre a governante, uma fervorosa seguidora da Igreja, Elisa Báthory, que se casou com o rei de Amelot e que tinha muita influência sobre o seu marido, um capacho servil. Por meio dele, ao longo dos últimos anos, a mulher tornou a religião da Igreja a oficial da cidade e declarou satânica todas as demais. A Inquisição tinha sua sede administrativa ali, sendo Elisa Bárthory uma de suas conselheiras, embora tal cargo não fosse formal – não se admitiam mulheres na cúpula da Igreja e sequer podiam dirigir missas. Sua influência era velada e decorria do grande controle que tinha sobre as questões religiosas em Amelot. Nesta cidade, as crianças eram doutrinadas desde tenra infância para odiar e delatar membros de outras religiões, mesmo que estes fossem seus entes queridos.

 

Adentrando a cidade, Lúcifer e Esmeralda notaram que existiam muitos mendigos nas ruas e que eles iam se multiplicando à medida que o centro da cidade se aproximava.

 

Existiam também pessoas solitárias, ou cercadas por bandos de pobres, pregando ou berrando alucinadas:

 

– Ele está voltando! Ele está voltando! O fim está próximo! – Todas essas pessoas carregavam uma Bíblia e, entre um berro e outro, liam, com os olhos esbugalhados e espumando, um trecho qualquer do livro, como se fosse pertinente para aquele contexto, como se os fatos se subsumissem às palavras daqueles alfarrábios.

 

ele-esta-voltando

 

– A intuição em Deus é uma prova de que ele existe! – Gritavam alguns.

 

– A fé pressupõe a não demonstração! Morte aos ímpios. – Esgoelavam outros.

 

– O comportamento promíscuo da mulher causa terremotos! – Ensinava outro.

 

Era comum que esses mendigos e pregadores orassem ou portassem sinais religiosos. O necromante e Esmeralda notaram também que havia muitas gaiolas (chamadas de “Caixão da Tortura”) e hastes de madeiras queimadas, rodeadas por feno igualmente queimado, pelo centro da cidade. Nas gaiolas, viam-se esqueletos de pessoas, corpos em putrefação, pessoas agonizando ou rogando por perdão e ajuda. Aqueles esqueletos, corpos em decomposição e pessoas confinadas, todos comprimidos em pequenas gaiolas, chocaram Esmeralda. Ela, que nunca havia ido para uma dessas grandes cidades, achava que já havia visto todo tipo de barbárie, mas aquilo era repulsivo. Pior que o Inferno. A moça perguntou ao necromante o que significava aquilo. Lúcifer não estava surpreso. Para ele era até uma visão normal, não só porque andara por inúmeros centros urbanos, mas porque manipulava os mortos.

 

Todavia, Lúcifer também ficou impressionado com a excessiva quantidade de gaiolas e pontos de cremação. Aquilo não era normal mesmo para uma das maiores cidades daquele tempo. O comum era três ou quatro gaiolas e um ponto de cremação para toda a cidade. Todavia, já haviam contado sete gaiolas e dois pontos de cremação e ainda estavam longe do centro. Lúcifer explicou:

 

– As mulheres são queimadas quando acusadas pelo julgador de bruxaria. Basta terem um mamilo torto para que digam que elas tiveram o peito chupado por Satanás e para serem tachadas de bruxas. Os homens, normalmente, são torturados e condenados por blasfêmia, apostasia ou por idolatrar ídolos de outra religião, mas também podem ser condenados à morte por trabalharem em dias sagrados.

 

– O que é apostasia? – Indagou curiosa.

 

– Abandonar ou trocar de crença. – Respondeu impassível o necromante. Apesar de tentar ser crítico e racional, às vezes, Lúcifer, tamanha a quantidade de barbáries que já havia visto, relatava fatos escabrosos com muita naturalidade. Presenciara tantas pessoas passarem pelo “Berço de Judas”, pela serra, pelo “Estripador de Seios” e pelo “Balcão da Tortura” que aquele cenário deprimente não o consternava mais. O ser humano tinha a capacidade de se acostumar com tudo, até mesmo com a barbárie. – Apedrejamento de mulheres por terem traído seus maridos também é bem comum. Basta a palavra do homem. – Comentou, talvez querendo demonstrar uma atitude concreta e reprovável que devesse ser punida de algum modo, embora acreditasse que nem mesmo a infidelidade devesse ser sancionada com a perda da vida. É certo que a infidelidade também era uma questão pessoal e particular, como a apostasia e a idolatria, mas tinha o condão de produzir algum reflexo prático, como a ruptura de um relacionamento.

 

– Os homens também são apedrejados se traírem? – Esmeralda e seu lado feminista e conscientizador perguntaram.

 

– Raramente. Só quando um rival poderoso consegue amealhar algumas provas da infidelidade. O homem manda e a palavra da mulher não vale nada. – Evitou olhar para os olhos verdes e severos da parceira. Sabia que ela nunca aceitaria isso.

 

Esmeralda pensou no pai. Talvez ele não tivesse sido tão cruel por apartá-la daquele mundo cheio de misticismo e sangue. Quiçá fosse melhor viver na ignorância, como aquelas pessoas religiosas, do que pensar ou lutar contra aquelas bizarrices sem sentido que dificilmente seriam mudadas pelos donos do poder. Velhos poderosos e conservadores, quando questionados sobre o tema, argumentavam que aquilo tudo que viviam não era só religião, mas sim uma cultura, cuja tradição já era secular. Mudar para quê? Dá muito trabalho. Deixe como está. Aceite. É o que diziam.

 

A confusão entre Estado e a Igreja era intrínseca àquela sociedade. Segundo entendia o necromante, o Estado devia se manter absolutamente neutro em relação a questões religiosas, não podendo beneficiá-las nem as prejudicar.

 

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Para sorte de Esmeralda, o dia já estava se esvaindo e ficaria mais difícil para ela notar as expressões de horror e agonia daqueles que estavam nas gaiolas ou mesmo daqueles que usavam a “Máscara da infâmia”, uma espécie de capacete metálico repleto de ofendículos que pequenos delinquentes eram obrigados a utilizar.

 

– Mais uma coisa. – Disse o necromante.

 

– O quê? – Perguntou a moça temerosa. Sabia que coisa boa não vinha.

 

CONTINUA…


Deuses gregos, celtas, nórdicos, egípcios, africanos e hindus (em festa) – Nota sobre “A Nova Teogonia”!

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Alguém comprou “A Nova Teogonia” pelo sistema da Editora! =)

Livro I e Livro II

Foi o primeiro assim vendido! É tão bom vender um livro para um desconhecido, e não apenas para conhecidos (familiares, amigos e agregados)… É claro que não ganhei quase nada financeiramente, mas estou muito feliz e os deuses protagonistas da “A Nova Teogonia” também.

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PS: só para não perder o hábito, vote nas enquetes!


Trilha sonora – Lúcifer e a conspiração dos arcanjos

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Two Steps From Hell – Archangel

 

https://www.youtube.com/watch?v=dJ-QLl5qjLg

 

Two Steps From Hell – Sons of war

 

https://www.youtube.com/watch?v=utujHPkjfwI

 

Sepultura – Necromancer

 

https://www.youtube.com/watch?v=IZus2QoZN9c

 

Hallelujah Chorus’ from Handel’s Messiah

 

https://www.youtube.com/watch?v=IUZEtVbJT5c

 

Helloween – Before the War

 

https://www.youtube.com/watch?v=mSXIncNMlx8

 

Iron Maiden – The Number Of The Beast

 

https://www.youtube.com/watch?v=WxnN05vOuSM

 

Epic Score: “Hell’s Army”

 

https://www.youtube.com/watch?v=3Qg_K93B5xQ

 

 

Manowar – Call to Arms

 

https://www.youtube.com/watch?v=5hcEuijXtDw

 

 

Epikus – Armageddon’s Advent| Most Epic Hybrid Vocal Orchestral Music

 

https://www.youtube.com/watch?v=S0wIXabnZk0

 

 

Antonio Vivaldi – Storm

 

https://www.youtube.com/watch?v=NqAOGduIFbg

 

 

Pecadores – Deus é Fiel? (Official Videoclip)

 

https://www.youtube.com/watch?v=UDr2fluopgE

 

 

U.D.R. – A Dança do Pentagrama Invertido

 

https://www.youtube.com/watch?v=kNfbAFYovf4

 

 

Padre Marcelo Rossi – Erguei as Mãos ft. Xuxa

 

https://www.youtube.com/watch?v=X9Kv0RZOzfQ

 

 


Lúcifer e a conspiração dos arcanjos – Parte 11

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Vide 10 parte

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– Se alguém lhe perguntar se você é consubstancialista aqui na parte sul da cidade, diga que é. Na parte norte, diga que não é. – Recomendou o necromante em tom de preocupação.

– Consu… o quê?

– Consubstancialista. Há uma discussão sangrenta sobre a natureza do salvador, o filho de Deus. Aquele que por algum motivo ignorado veio redimir nossos pecados. Aqui na asa sul, as pessoas são consubstancialistas, pois acreditam que a essência do filho de Deus é a mesma de seu pai, o Homem Invisível. Na asa norte, é dito que pai e filho são feitos de substâncias diferentes.

– Substância? Que substância? Sério que eles discutem isso?

– Eles se matam por causa disso.

religiao

Esmeralda ficou perplexa. Que tipo de substância seria? Seria herança genética? Espiritual?

– Mas alguém viu Deus e seu filho? Como podem discutir isso se o salvador deixou a Terra há milhares de anos.

– Segundo a Igreja, “na unidade da Divindade há três pessoas, o Pai, o Filho e o Espírito Santo, sendo que essas três pessoas, se é que se pode chamar assim, são distintas uma das outras, mas não existem três deuses, apenas um”. – E o necromante olhou com os olhos esbugalhados para Esmeralda, um pouco envergonhado. De fato, brigava-se por nada. – Foram escritos muitos livros sobre isso. – Concluiu o rapaz.

Esmeralda ficou horrorizada. E ela pensando na liberdade sexual das mulheres, dos homossexuais, na paternidade responsável e no combate às drogas e ao alcoolismo. Esmeralda não sabia que as pessoas dos grandes centros urbanos travavam grandes discussões e se matavam por questões tão inúteis e sem base fática alguma. Ficou com a impressão de que a trindade existia apenas para que as pessoas continuassem confusas e com complexo de inferioridade. Mas o que esperar de gente que comemorava quando ateus, homossexuais, pagãos e descrentes eram mortos por religiosos fanáticos em terras distantes ou quando cidades como Sodoma e Gomorra eram extirpadas da face da Terra?

mente-crista

Feitas essas considerações por Lúcifer, no início de uma grande rua íngreme, onde ficavam inúmeros comerciantes, a maioria deles já guardando suas mercadorias, viram um que vendia roupas. Foram até ele. Chegando ao comerciante, perceberam que ele manifestava muito medo e reprovava o vestuário dos visitantes. Também perceberam que muitos os olhavam furtivamente e os evitavam. O próprio comerciante evitava olhar diretamente para os estranhos, revelando-se uma pessoa assustada e arredia. Falava para dentro e observava constantemente o movimento da rua. Talvez esse comportamento fosse causado pelas roupas dos clientes potenciais ou porque o vendedor notara que eram forasteiros alheios ao que acontecia naquela cidade. Sabia que provavelmente seriam mortos. Entre o medo de ser punido por se relacionar, ainda que comercialmente, com os viajantes e a necessidade de sobreviver, o nativo se limitou a dizer o preço das peças de roupas (duas moedas de bronze cada), que eram todas iguais – túnicas marrons que cobriam todo o corpo. Além do material ser de péssima qualidade, a roupa era feia e mal confeccionada. Isso não agradou a Esmeralda, mas era melhor do que uma roupa transparente e a roupa de um necromante dentro de uma cidade dominada por aquela seita conservadora e violenta chamada Igreja. Com efeito, os nativos não tolerariam uma mulher que se vestia como uma prostituta e que olhava diretamente para os olhos dos homens e também não tolerariam um necromante ali, uma criatura ateia por natureza e que não se vinculava a ninguém, além, é claro, de manipular mortos e de poder retirar a alma das pessoas. E de todo modo, em Amelot fazia muito frio, sendo este outro motivo para a compra das túnicas.

Aquelas roupas antiquadas e conservadoras era o padrão de vestimenta da cidade. Um padrão medieval, de um povo temente ao sobrenatural, longe do Iluminismo e da razão, totalmente sujeito ao que havia de mais retrógrado no mundo terreno. A maioria das pessoas que os forasteiros viam se vestia com pesados casacos escuros, principalmente as poucas mulheres que perambulavam sempre acompanhadas de homens ou de outras mulheres.

O necromante, que só tinha moedas de ouro, trinta aproximadamente, entregou duas ao vendedor, o que lhe rendeu uma bela cotovelada de Esmeralda, pois evidentemente aquelas roupas não valiam nem meia moeda de bronze. O comerciante estendeu a mão para pegar as moedas e teve um sobressalto quando viu as duas moedas de ouro. Colocou-as rapidamente no bolso e olhou para ambos os lados, de forma a certificar-se de que ninguém viu a transação, pois temia ser roubado ou ter que pagar imposto extraordinário para a Igreja. Finalmente, comovido pelo dinheiro, o vendedor olhou diretamente para o necromante. Lúcifer percebeu que o homem estava curioso e, então, animou-se, dizendo:

– Preciso de informações. Procuro uma moça chamada Klepoth.

O comerciante, então, ficou ainda mais assustado, como se aquele nome fosse proibido. Passou a guardar as mercadorias de forma célere, olhando freneticamente para os lados. Indicando que nada falaria sobre o assunto.

medieval

– Nós temos mais moedas de ouro. – Disse Esmeralda friamente.

– Silêncio. – Manifestou-se o comerciante, estranhando o fato de que uma mulher lhe dirigia a palavra. – Fale baixo. Há muitos ladrões e inquisidores por aqui. Ajudem-me a guardar as roupas e venham comigo. – O comerciante temia os julgamentos da Inquisição, pois quem acusava também julgava e a lei aplicável era a divina, escrita e interpretada por homens. Não havia como vencer a Igreja em seu próprio tribunal.

– Atchim!!!

Após alguns minutos de intenso trabalho e tendo os compradores vestido suas novas roupas, os três seguiram por uma viela fora da avenida principal. A via estava quase vazia. Só havia um mendigo deitado no chão, recoberto por alguns panos grosseiros, acompanhados de ratos e do cheiro insuportável de urina. Não era possível dizer se estava apenas dormindo ou se havia morrido. Estava imóvel.

– Então, diga. Onde podemos encontrar Klepoth? – Perguntou Esmeralda impaciente.

O comerciante, acendendo sua tocha, pois o breu da noite ganhava velocidade e impossibilitava o uso do sentido da visão, disse, olhando para o necromante:

– Klepoth, a depravada… – Esse apelido deixou Esmeralda mais irritada, mas ela nada falou. Para a moça era imprescindível saber onde estava sua mãe e nem o fato de ser ignorada pelo machismo alheio a impediria de ouvir o que o homem tinha a dizer. – Ela mora na margem da cidade, ao pé da montanha. Vocês precisam seguir na direção do topo da montanha. Continuem subindo, atravessem o centro da cidade e continuem em frente. Mas há um porém…

– Qual? – Perguntou o necromante.

O comerciante parou, olhou para um lado, olhou para o outro, estufou o peito e olhou de soslaio para o saco de dinheiro do necromante. Lúcifer, então, sacou mais duas moedas de ouro.

– Continue. – Ordenou.

– O regente da cidade está em guerra contra Klepoth, a depravada. Ela é uma bruxa muito poderosa e cruel. Já dizimou dezenas dos melhores homens do reino. Eles nunca mais voltaram e de lá ela não sai. Dizem que todos que se aproximam da casamata de Klepoth, a depravada, ou morrem ou viram escravos dela. Fiquei sabendo que Elisa Báthory, mulher do regente da cidade, irá caçá-la pessoalmente e que se valerá da Inquisição para isso. Ela está dizendo que terá apoio do próprio Deus. A Inquisição já está arregimentando um grande contingente de guerreiros para acabar com a bruxa. Segundo Elisa, Amelot contará com a ajuda de entidades celestiais. Ela não quer que Klepoth se junte às forças do mal.

– Vão queimá-la. – Concluiu Lúcifer.

– Então vamos. – Determinou Esmeralda.

– Vocês não conseguirão andar pela cidade à noite sem uma tocha. A iluminação pública é péssima.

De fato, os postes ostentavam pequenas chamas em seu cume que durariam apenas algumas horas.

– Quanto custa esta tocha que você carrega?

– Três moedas de ouro. – Respondeu convicto.

O necromante, contrariado, sacou mais três moedas de ouro. Esmeralda pensou alto:

– Aproveitador.

– É a lei da oferta e da procura, o que fazer? – Respondeu o vendedor soturno. E antes de desaparecer no breu da noite, emendou irrefletidamente: – Vá com Deus.

Partiram portando a tocha. Dirigiam-se para onde estavam os arcanjos, na direção oposta à residência de Klepoth, pois pretendiam ir até a mãe de Esmeralda voando, quando foram interceptados por dois guardas em sua montaria:

– Ei, vocês dois, o que fazem aqui a essa hora?

– Estamos apenas de passagem, senhor. – Respondeu o necromante com sua voz abafada, tentando transmitir o máximo de tranquilidade possível.

– Tirem o capuz. – Determinou outro soldado.

O necromante baixou o capuz e nada chamou a atenção dos guardas, até porque, àquela hora da noite, era comum que pessoas com expressões cansadas perambulassem por ali e acolá.

– Ei, idiota, agora é sua vez. – Ordenou o outro guarda batendo na cabeça de Esmeralda com a bainha da espada. Ela caiu no chão. Nervosa, levantou-se e baixou o capuz. Os guardas olharam surpresos para ela. Conheciam ela:

– Você?! – Gritou um deles. – Uma bruxa! Purificação!

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Imediatamente, Esmeralda, tomada pela fúria, usou seu poder. Altas ondas sonoras saíram de sua boca, fazendo com que os guardas fossem derrubados dos cavalos. A tocha de Lúcifer se apagou e os animais saíram correndo sem direção – um deles inclusive bateu contra um poste de iluminação, derrubando-o e fazendo com que as chamas que iluminavam parte da rua caíssem sobre uma casa feita de madeira. Um incêndio logo começou. Posteriormente, como vieram a saber poucos momentos depois, tomou dimensões descomunais. O fogo se alastrou rapidamente entre as construções de madeira que eram próximas umas às outras. Muitas pessoas perderam suas casas e ficaram na rua, no meio da noite gelada.

Lúcifer e Esmeralda correram ladeira abaixo. Durante a corrida, Lúcifer perguntou ofegante:

– Você os conhece? Disse que nunca veio para cá.

– Eu não os conheço. – Respondeu a bela. – Nunca vim para Amelot.

– Mas… – Tentou argumentar o necromante

– Não sei. – Resfolegou. – Continue a correr, Formol. Quero chegar logo até os arcanjos. Voando chegaremos mais rápido à minha mãe.

– Atchim!!!!

Mas os heróis não precisaram chegar até os arcanjos. Estes voaram imediatamente para encontrá-los em razão do crescente incêndio, gritaria e promessas de morte. Os celestiais não podiam perder Lúcifer. Em que pese ser noite, os arcanjos tinham excelente visão, semelhante à de uma águia, que não sofria tanto os efeitos da noite, não encontrando muita dificuldade em localizar os companheiros. O resgate foi rápido e eficaz, todavia os arcanjos tiveram que se expor e foram vistos por alguns cidadãos. A celeuma em torno daquela visão de entidades celestiais foi grande e se tornaria maior com o tempo. Com certeza a localização deles chegaria ao conhecimento dos inimigos, o que abria a possibilidade de serem rastreados, encontrados e punidos por Lúcifer ou Metatron.

– Vós estais bem? – Perguntou preocupado Samuel.

– Sim! – Respondeu Esmeralda. – Tire-nos daqui. A casa da minha mãe fica do outro lado da cidade, ao pé da montanha.

O necromante, sem fôlego, só deu um “ok”. Estava fora de forma.

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E assim foram. Esmeralda com Samuel e Lúcifer com Gabriel. Dessa vez, em função dos grossos mantos marrons, a viagem foi menos traumática para o necromante. No entanto, durante o curto trajeto, Samuel, Esmeralda e Formol tiveram que ouvir as reclamações de Gabriel.

Nós fomos vistos! Deveríamos ter ficado escondidos esperando os sinais. Aquela depravada em nada nos ajudará. Agora seremos localizados.

Gabriel, por favor, acalme-se. – Suplicou Samuel.

Acabaremos como Uriel e Rafael! – Vaticinou Gabriel irritado. – Entendo que devemos voltar lá e acabar com as ovelhas antes que Lúcifer e Metatron saibam do ocorrido. – Gabriel entendia que toda a cidade e seus habitantes deveriam ser destruídos.

Não Gabriel! São inocentes! Eles não têm culpa.

Em breve, as ovelhas vão morrer mesmo. – Disse Gabriel se referindo aos seres humanos. Os celestiais se referiam aos seres humanos como ovelhas.

 

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– Nojento. – Comentou Esmeralda indignada.

Em questão de minutos, contornaram parte da montanha e chegaram ao pé dela. Pousaram. Gabriel desistiu de destruir Amelot, pois Samuel o lembrou de que isso iria chamar atenção de Lúcifer e Metatron imediatamente e de que ninguém no Céu ou no Inferno dava importância para a crença e relatos dos seres humanos. Com efeito, nenhuma entidade celestial ou infernal dava bola para os terráqueos ou para suas preces. Aliás, o Paraíso e o Inferno achavam ridículo o antropocentrismo dos humanos, crentes de que uma entidade cósmica, para eles onisciente, onipotente e onipresente, fosse perder tempo com meros mortais, habitantes de um minúsculo planeta de uma galáxia qualquer, ensinando e exigindo, para salvá-los (sabe-se lá do quê), que nela acreditassem. Eles não conheciam ou se recusavam a entender o princípio da mediocridade. De fato, humanos, criaturas que não tinham nada de especial, a não ser a racionalidade, que preguiçosa ou teimosamente não usavam, só serviam como fonte de almas para alimentação.

Gabriel deixou o pé da montanha e voou alto. Das alturas, notou que havia uma grande fazenda com uma mansão no centro, rodeada por desfiladeiros e penhascos. O terreno acidentado era uma boa defesa natural. Havia iluminação na casa. Em uma das inúmeras janelas, uma luz vermelha trêmula podia ser notada. Provavelmente, existiam muitas tochas acessas no aposento.

Gabriel voltou ao pé da montanha e logo todos partiram para a fazenda. Voando, transpuseram as cercas farpadas do sítio e aterrissaram na frente da porta principal. Samuel e Gabriel, cujas percepções eram mais evoluídas, notaram que inúmeros seres se esgueiravam pelo local.

Provavelmente a mansão era defendida por feras. Estavam atentos, com as mãos na bainha das espadas “Uma mensagem para ti” e “Força interior”. Apesar da escuridão, perceberam que a fazenda era bem cuidada e que tinha um grande jardim com vegetação tipicamente temperada. Era um recanto bem preservado e bem tratado. A grama era muito verde, não obstante o frio.

Frente à porta, Esmeralda se antecipou. Estava ansiosa. Tinha quase certeza de que aquele era o lugar em que sua mãe morava, pois era um lugar repleto de bom gosto. Bateu na porta.

Samuel, Gabriel e Lúcifer, que sentiu a presença de inúmeros cadáveres enterrados recentemente no jardim, estavam preocupados com o estranho ambiente. A porta se abriu. A primeira visão de Esmeralda foi a de um homem meio fora de forma, de meia idade e seminu.

– Pois não? – Ele disse estranhando a visita, pois ninguém os visitava.

Porém, no momento seguinte, ao olhar para o rosto de Esmeralda, ele exasperou-se.

– Oh, madame!? Eu… eu acabei de deixar a senhora no sa…

– Ela quer ver Klepoth, a deprav… – Lúcifer interrompeu a própria fala. Não queria que Esmeralda ficasse nervosa, sob pena de levar uns tabefes. – Ela é filha de Klepoth e quer ver a mãe. – Complementou singelo e objetivo.

O mordomo, exasperado, pediu que aguardassem, fechou a porta e, pelo que se pode notar, correu em direção ao interior da casa. Alguns segundos depois, ouviu-se um rebuliço dentro da casa e uma voz feminina podia ser ouvida, ainda que longínqua e abafada, dando inúmeras ordens, mandos e desmandos atabalhoadamente. Logo a porta se abriu novamente e uma mulher igual a Esmeralda apareceu.

FILHA!!!! – Após a exclamação, ela se calou e fez cara de estranhamento, arrematando. – Como você está acabada. – E então abraçou Esmeralda.

Realmente Esmeralda era idêntica à Klepoth. Por isso, Gabriel disse o que disse horas atrás, ao cabo do resgate e por isso o guarda de Amelot se exasperou quando o capuz da moça baixou. Naquele momento, algumas palavras de Lilith, no inferno, fizeram sentido. Apesar da simetria e apesar de Esmeralda ainda ser a mulher mais bela do mundo, ela estava cansada, com grandes olheiras, com os cabelos bagunçados e muito faminta. De fato, naquele dia havia acontecido muita coisa e os últimos dias em que permaneceu no Inferno foram extremamente estressantes. Precisava dormir um pouco.

Enquanto mãe e filha se abraçavam, notaram os convidados que a casa era povoada por homens, todos seminus e comandados por Klepoth. Eram seus escravos.

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Após abraçar a filha, falar que ela estava acabada, dar novamente inúmeras ordens a seus escravos, inclusive ameaçando usar sua chibata caso demorassem para cumpri-las, notou que Esmeralda não estava só.

Lúcifer entrou logo depois de Esmeralda, e logo foi cortejado pela anfitriã, que o achou bonitinho, embora magro e abatido. O coitado não devia comer há dias. Estava um trapo, mas nada que uma boa comida não resolvesse. Ao notar a entrada dos arcanjos em sua casa, no entanto, o coração de Klepoth disparou.

Filha, quem são esses … arcanjos?

– Eles… – A moça estava prestes a explicar a situação, mas o pavor da mãe a interrompeu.

Eu não fiz nada, minha filha. – Disse exasperada. – Estou apenas cumprindo minha pena. Depois que fui expulsa do Paraíso não mais incomodei os serafins. Mande-os embora, por favor.

Samuel foi o primeiro arcanjo a entrar e, ao ouvir as considerações de Klepoth, acalmou-a:

Viemos em paz, madame. – Afirmou imponente o arcanjo. – Sou o arcanjo Samuel e este é Gabriel. Buscamos apenas algumas informações sobre Lúcifer e agradecê-la pela contribuição dada à nossa causa, ainda que tenha sido involuntária. – Arrematou Samuel.

Foi amor à primeira vista. Klepoth, que desde longa data vivia na Terra, há muito tempo não via uma criatura celestial do sexo masculino. Sentia falta deles. Estava cansada de humanos. Eles eram tão frágeis, substituíveis, breves, incompetentes e desprovidos de qualquer poder e conhecimento científico rigoroso. Não conseguia ter com eles uma conversa intrigante, nem obter novos conhecimentos.

Outrossim, Samuel não era qualquer entidade celestial, era um arcanjo. Achou-o muito bonito. Um arcanjo alto, forte e loiro, com voz robusta e penetrante. Embora ele fosse apenas da terceira hierarquia celestial, Klepoth nunca havia visto tantos músculos e compleição mais perfeita do que aquela. As asas dele deveriam ter no mínimo seis metros de envergadura! Que asas, hein? Imediatamente, Klepoth se sentiu envergonhada de seus escravos. O que ele iria pensar daquilo? Manter dezenas de homens como escravos…

Ela sentiu que precisava acabar ou pelo menos esconder aquilo imediatamente de seus convidados. Ordenou estressada e afoita que seus serviçais arrumassem os quartos dos visitantes, que se vestissem adequadamente e que preparassem o jantar para os convidados o mais rápido possível.

Rapidamente, inúmeros puffs, chicotes, afrodisíacos e instrumentos estranhos sumiram da sala, dos quartos e de todos os cômodos da casa. Em um curto espaço de tempo, aqueles homens seminus estavam trajados convenientemente.

Filha querida, coma um pouco. – Falou tentando esconder o constrangimento. Indicou o sofá para que os visitantes se sentassem. – Temos carne de texugo e molho de morcego. Sintam-se em casa. Ai, espero que gostem. Meus escrav…, quer dizer, meus colaboradores tiveram tantos problemas para encontrar estes ingredientes.

Para o necromante, a refeição foi breve e longa. Breve, porque engoliu a comida, apesar do nojo. Dessa forma, ele não precisaria sentir o gosto dela. E longa porque a angústia que sentira, oriunda daquela refeição bizarra, não sairia de suas memórias tão cedo. Certamente, teria problemas digestivos.

Antes de se recolherem, Klepoth combinou com os visitantes que pela manhã conversariam profundamente sobre o que fosse necessário e, em particular, pediu para que Esmeralda lhe contasse tudo o que havia acontecido, naquela noite mesmo. Samuel assentiu, pois entendia os sentimentos da mãe e da filha. Klepoth queria tanto conversar em particular com sua filha e queria saber como ela viveu os últimos anos e também como estava seu pai. Também queria pedir desculpas pelo abandono e explicar suas motivações. Estava muito desatualizada acerca dos acontecimentos. Sabia apenas que os demônios mais uma vez estavam planejando o retorno de Lúcifer, porque há algumas semanas tinha recebido um convite para participar de uma empreitada contra o Paraíso. Mas como não deram detalhes, como já tinham tentado libertar Lúcifer outras vezes e como os odiava, deu de ombros e tocou a vida. Não queria se meter com Lúcifer ou Metatron.

Após a ceia e de conversas preliminares, onde Klepoth tomou ciência, por cima, do que estava ocorrendo, os convidados, com exceção de Esmeralda, foram se deitar. Aquele foi um dia longo para todos. Já na cama, os hóspedes sentiram o cansaço e o desgaste que a simples permanência no Inferno causava. O arcanjo Samuel, no entanto, ficou de prontidão. Ele se instalou sobre o telhado da moradia de Klepoth e passou a noite alerta, como se esperasse algum sinal. Tudo dependeria de uma atitude rápida e cirúrgica dos conspiradores, sob pena de morte de milhões de anjos, demônios e seres vivos da Terra.

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O necromante, em seu leito, ainda sentia um leve cheiro de enxofre no ar. Aquele maldito fedor não lhe deixaria tão cedo.

Deixadas a sós na sala, mãe e filha conversaram por horas:

Perdoe-me filha por ter deixado você sem mãe por tanto tempo. Eu tive minhas razões

Esmeralda continuou em silêncio. Estava com os olhos marejados. Finalmente encontrara sua mãe e nada do que ela dissesse estragaria aquele momento mágico. Deram-se as mãos e se olharam fixamente.

Sabe, filha, sou uma virtude caída, um demônio.

– Mas… – Hesitou Esmeralda curiosa.

Eu sei que é vergonhoso e que demônios são caçados e mortos, mas eu sou boa, sempre fui. Não sou má.

– Não mãe, não tenho vergonha, é que…

Sobre os homens da casa, não é o que

– Não, não é isso.

– Não entendo filha, por que hesita?

Você não parece um demônio. Você é linda.

Ah! – Exclamou aliviada Klepoth. – Entendi, vou te explicar. E eu achando que tu irias defender esses imbecis da casa. São imprestáveis. – Disse a orgulhosa virtude.

Esmeralda sorriu constrangida. Percebeu que sua mãe não era nada objetiva e divagava demais. Totalmente disfuncional. Não era ela objetiva e precisa como Lúcifer. Talvez fosse a emoção, mas não parecia. Seria ela mesma detentora de grande conhecimento?

Sabe, fui uma das primeiras a ser expulsa do Céu por Metatron, antes da maldição ser lançada sobre os seguidores de Lúcifer. Não fui infectada. – Uma lágrima correu de seus olhos e a respiração ficou carregada. Klepoth abraçou a filha. Depois de alguns minutos de silêncio e muitas lágrimas, o demônio continuou:

CONTINUA….

 

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Lúcifer e a conspiração dos arcanjos – Parte 12

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Vide parte 11

 

—————-

Durante o governo do arcanjo Vehuiah, o amor livre foi estimulado. Havia igualdade de sexos e era comum que anjos femininos tivessem mais parceiros sexuais do que os anjos masculinos.

 

Os olhos de Esmeralda se arregalaram.

 

A capacidade feminina de fazer amor é praticamente inesgotável. O masculino precisa fazer paradas a todo momento e consome muita energia. Tadinhos. Gozam e dormem. – Lamentou. – Eu, entre os anjos femininos, era a que mais tinha parceiros, afinal eu era uma virtude. Cheguei a morar com 57 anjos ao mesmo tempo. Eu tinha tanta energia… Nenhum dos pobres coitados me aguentava por muito tempo. – Vangloriou-se. – Sabe, tinha um com um… – E gesticulou alguma coisa com as duas mãos.

 

– Não precisa dar detalhes, mãe.

 

Desculpe-me. Então, continuando, foi uma época em que fiquei bastante conhecida no Paraíso. Minha autoestima estava no pico. Eu era a mais linda e formosa. Todos me queriam e me amavam, porque eu dava sem pedir nada em troca. Não importava se era para um trono ou se era para um anjo, pois todos tinham algo para me ensinar. Eu era carinhosa, atenciosa e contagiante. Os anjos que me visitavam tinham liberdade para dizer o que sentiam e pensavam. Nessas visitas, eu ouvia muitas reclamações sobre as esposas palpiteiras, malcuidadas, chatas, controladoras, orgulhosas e indecisas. Porém, um dia o governo do arcanjo Vehuiah acabou. O próximo governo seria de Jeliel, mas Metatron assumiu o controle. Jeliel, que era um apaziguador, sugeriu, para evitar uma guerra civil e a derrota dos quatro serafins opositores ao controle de Metatron, que o sistema de rodízio de serafins no poder fosse mantido, mas que Metatron fosse declarado deus honorário. Mas na prática, o maldito passou a ter controle sobre tudo, inclusive sobre a moral do Paraíso. Instituiu a monogamia e me acusou de devassa. Disse que sexo só poderia ser feito para engravidar e que não havia outra razão de ser. Proibiu o aborto, alegando que a vida era sagrada e que os fetos eram inocentes, mas matava anjos sem piedade quando contrariado. Pouco se importava com o planejamento familiar dos anjos menos afortunados e com a condição feminina. Em outras palavras, Metatron privilegiava fetos que mal tinham sistema nervoso, e que muitas vezes eram inviáveis, e desprestigiava os anjos já desenvolvidos. Um anjo que praticasse aborto no anjo feminino, ainda que com o consentimento dela, morria. Acabou com o suicídio assistido de doentes terminais e com a eutanásia. Preferia jogar os anjos doentes no Lago de Fogo para que lá sofressem ou preferia vê-los sofrerem, ao invés de deixar que morressem em paz, tudo para ser coerente com seu princípio de que a vida era um valor absoluto. Hipócrita. Vendo todos esses retrocessos mesquinhos e sem sentido, e acostumada à liberdade, não me calei. Enfrentei Metatron. Clamava por amor, sexo e liberdade. Liderei um movimento que teve adesão maciça dos anjos femininos e dos homossexuais. Queimamos sutiãs nas ruas do Paraíso, idealizamos a Parada Gay e exigimos o direito de todos terem uma vida sexual livre, pois ela não importava a ninguém, a não ser aos próprios anjos que faziam sexo. Afinal, era uma questão particular. Como resposta, Metatron me expulsou e mandou centenas de anjos femininos militares suprimir toda e qualquer manifestação de nosso movimento. Colocou o feminino contra o feminino.

 

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Klepoth chorou e continuou:

 

Infelizmente, eu não sabia de nenhum podre dele, mas ele sabia dos podres de muitos anjos poderosos por meio das respectivas esposas descontentes com minha concorrência. E os anjos femininos poderosos me odiavam, pois não tão eram amadas quanto eu. As coisas ficaram ruins primeiro para os anjos femininos da militância que perderam poder e prestígio. Depois também ficou ruim para todas as criaturas femininas. Metatron, poderoso que era, tirou os anjos femininos dos postos de comando e atribuiu a elas funções domésticas e de criação dos filhos até a idade de irem para o exército celestial. Também acabou com a função de anjo da guarda para os jovens anjos. As escolhas do “antiquado” eram inquestionáveis. Entendia ele que cada sexo tinha uma função pré-determinada. Não havia discussão. É como acontece aqui na Terra com relação à religião, ela não permite questionamentos, pois se baseia em delírios, mas no caso de Metatron era pura mesquinharia e vontade de aparecer e impor seus conceitos sobre os outros, valendo-se de seu poder de luta muito superior ao dos demais serafins e querubins. Depois apareceu Lúcifer e virei a amante dele aqui na Terra… Lulu era tão sedutor. Os anjos femininos sucumbiam a seus encantos, o que desagradou muito os seres celestiais masculinos. O Céu se dividiu, pois Lúcifer era muito poderoso e um forte ponto de resistência ao controle insano de Metatron. Foi neste momento que meu nome foi manchado por toda a eternidade. Após a expulsão de Lulu, os anjos femininos sofreram nova opressão, pois o feminino foi considerado o sexo frágil, incapaz de dominar seus desejos carnais, pois se entregava ao querubim opositor de Metatron com muita facilidade. Era um perigo para as famílias e para a moralidade de Metatron. Este considerou que os anjos femininos eram uma ameaça à segurança familiar e ao Paraíso, pois Lulu poderia ter filhos tão poderosos quanto ele. Assim, Metatron determinou que as famílias adotassem um modelo patriarcal, formalizando a opressão sobre o feminino. Este modelo também foi adotado aqui na Terra pela Igreja, influenciada pelos principados do Paraíso, pelas histórias bobas por eles contadas, algumas transcritas na Bíblia, e pelo conservadorismo de velhos decadentes. Assim, as mulheres, que tinham alguma proeminência em algumas civilizações da antiguidade, nesta idade medieval, foram jogadas na fossa, tachadas de bruxas e receptáculos do diabo. Bastava ter uma pinta que ao ser alvo de uma agulhada não provocasse dor para ser acusada de ter mantido relações sexuais com o demônio. Aqui na Terra, as mulheres foram consideradas uma ameaça ao Homem Invisível onisciente, onipresente e onipotente que paira nos céus distribuindo uma suposta bondade que os primitivos humanos acham que existe fora deles.

 

E a conversa entre mãe e filha continuou noite adentro, só findando perto do dilúculo.

 

A madrugada foi tranquila para os guerreiros. Todos os visitantes, com exceção de Samuel, dormiram pesado e profundamente. As últimas horas haviam sido agitadas e perigosas. Lúcifer, depois de semanas de sonhos tormentosos, não teve pesadelo algum. Na manhã seguinte, acordou disposto e feliz. Achou que nunca havia se sentido assim, pelo menos não se recordava de ter uma noite de sono tão boa. Por que seus sonhos cruéis se esvaíram naquela noite? Teria paz? Olhou para o Grimório e teve certeza de que a resposta para essa pergunta era não.

 

necromancer

 

Levantou-se. Ao lado da cama havia uma bela roupa vermelha, apropriada para o tamanho de Lúcifer. Tratava-se de uma longa capa com inúmeros pequenos detalhes em relevo. Havia gravuras de anjos e demônios, de pessoas em atividade sexual e de morte. “Onde está Esmeralda?”, pensou a visita. Saiu do quarto e desembocou em um corredor com inúmeras portas. Estava no segundo andar da mansão. Dirigiu-se até a escada. Pretendia comer alguma coisa. Provavelmente Esmeralda estaria na sala. Queria vê-la. Ela e sua mãe teriam conversado sobre o quê? Sobre ele? Sorriu com essa possibilidade. Entretanto, andando pelo corredor, viu um dos escravos de Klepoth. Ele, com medo, chamou Lúcifer para dentro de um aposento. Lúcifer tentou ignorar, mas não conseguiu, o homem suplicou, parecia estar desesperado. Não tendo como recusar o chamado, o necromante seguiu o condenado.

 

– Amigo. Precisamos de você. Queremos fugir dessa mansão, mas Klepoth…

 

Lúcifer ficou impassível, pois não sabia o que fazer ou dizer. Era constrangedor saber que a mãe de seu amor, que tão bem os acolheu, era a causa do terror daqueles homens, muitos com porte de guerreiros.

 

– Bem, veja… – Nada vinha na mente do necromante.

 

– Você é nossa última esperança. Já tentamos fugir, rebelamo-nos, mas não conseguimos escapar do controle dela. Klepoth sempre se antecipa às nossas ações. Além disso, amaldiçoou-nos.

 

Logo apareceram mais homens pela porta.

 

– Ela nos escraviza. Somos escravos sexuais. Sofremos todo tipo de violações e humilhações. – Disse um homem de meia-idade de olhos apavorados.

 

– Sim, e quem se rebela contra ela ou é mutilado ou é morto. – Denunciou outro, mostrando que era eunuco. Formol quase vomitou ao ver a genitália obliterada alheia e, instintivamente, verificou se estava tudo bem com suas partes íntimas.

 

– E aqueles que fogem, morrem. Nunca houve fugas aqui. – Arrematou um quarto.

 

O homem de meia-idade tornou a falar:

 

– E aqueles que envelhecem e que não conseguem mais satisfazê-la sexualmente são descartados. – Lúcifer pensou e olhou para o eunuco e este mostrou a língua como resposta.

 

– Sem contar os maus tratos diários. – Complementou o primeiro homem que falou com Lúcifer.

 

– Por favor, nos ajude.

 

Coagido e cercado pelos homens desesperados, Lúcifer disse ainda sem convicção:

 

– Bem. – Começou o necromante. – Verei o que posso fazer. Preciso de tempo. Estou chegando agora e…

 

– Se nada for feito, haverá um banho de sangue nessa mansão. – Ameaçou o homem de meia-idade. O necromante percebeu em todos eles o desespero de uma vida arruinada e fadada à escravidão. Concluiu que os celestiais tinham uma tendência ao totalitarismo.

 

O dia parecia ser tão promissor”, pensou Lúcifer lamentando o ocorrido. Às vezes a vida era um fardo. Lúcifer deixou o cômodo um pouco apressado, desceu as escadas e permaneceu inquieto. Na sala central, por onde entraram na noite anterior, estavam Samuel, Gabriel, Esmeralda, que estava tão ou mais linda que a mãe, e Klepoth. Pareciam estar ali há horas. Provavelmente Klepoth já sabia de tudo.

 

Oi lindo! – Exclamou animada a virtude. – Dormiu bem? – Perguntou já sabendo a resposta.

 

esmeralda

 

– Sim. – Respondeu desajeitado Lúcifer, evitando olhar para o rosto dela.

 

Meus escrav…, digo, ajudantes já te incomodaram, não é mesmo? – Interrogou a megera demonstrando alegria, mas com um tom malicioso e um olhar profundo e severo recusado por Lúcifer.

 

– Não, eu estou bem. – Tentou disfarçar o necromante. Realmente aquela bruxa sabia de tudo o que acontecia na mansão. Será que ela sabia que ele havia se masturbado três vezes antes de dormir pensando em um ménage com ela e com Esmeralda?

 

– Minha mãe criou uma barreira protetora em torno da fazenda, assim você foi protegido dos pesadelos enviados por Lúcifer e seus sequazes, bem como estará protegido dos que serão enviados por Lilith.

 

– Lilith? – Perguntou exasperado o necromante, lembrando da rival.

 

lilith

 

– Sim, aquela que me agrediu antes de você me resgatar do Inferno. – Lembrou Esmeralda.

 

Puta. – Sussurrou Klepoth para si mesma. Depois arrematou, já em tom alto. – Ela virá atrás de vocês dois. Se bem conheço Lúcifer, ele não admite que uma concubina lhe seja subtraída, principalmente do nível de Esmeralda. Ele ainda me adora e certamente irá querer minha filha para ocupar o lugar que um dia foi meu. Machista de merda. Mandará Lilith resgatar Esmeralda mesmo sabendo que ela tentará matar minha filha. Quanto ao seu amigo. – Olhou para Lúcifer. – Só lhe restará a morte se pego for. Cairá no Inferno. – Disse com naturalidade mórbida.

 

Se ela me matar, não irei mais para o purgatório, mas para o Inferno?”, pensou o necromante. Aquela questão de ir para o Céu ou para o Inferno ou para o Purgatório era muito complicada e lhe trazia angústia. A cada hora lhe era dito algo diferente. Não havia regras. Era como a discussão sobre a Santíssima Trindade e sobre o consubstancialismo: não fazia sentido algum. Lúcifer resolveu fazer como alguns “estudiosos” de uma entidade atemporal e imaterial, e que, portanto, não poderia ser estudada por criaturas temporais e materiais, chamada Deus: ignorou a problemática. Com efeitos, esses “estudiosos” pregavam, conveniente, a falta de capacidade humana para entender esse “grande” mistério. De fato, não era inteligente entrar em questões filosóficas sobre algo que ninguém compreendia exatamente. Não esquentaria a cabeça por causa daquelas dúvidas quanto a seu destino, afinal o Inferno não parecia ser um lugar tão ruim assim.

 

Mas como conheço Lilith, ela tentará matar Esmeralda e a mim também. Ela é muito ciumenta e me odeia. Sou a mais bela e a predileta de Lulu, aquele cretino. – Riu o demônio retomando o seu assunto preferido: Lilith. Klepoth gostava de criticar os vestidos e roupas da rival.

 

Como assim? – Perguntou Samuel.

 

Ah, querido, um caso antigo. Mas eu já esqueci completamente aquele cachorro. Só não virei mais uma de suas esposas, porque Lilith estava insuportável na época. – Olhou para a filha rindo. – Ela não admite que exista uma esposa mais bela do que ela. Tentou me matar inúmeras vezes. Infeliz. Mesmo depois que fui embora do Inferno, ela me perseguiu por vários séculos. Por isso, tive que abandonar minhas crias pelo mundo, inclusive ti, querida. – Lamentou. – Mas agora, com o fortalecimento do Inferno, ela terá maiores chances de conseguir seu intento. Logo teremos visitas. Temos que sair daqui. – Complementou.

 

– Ela não sabe onde estamos. – Asseverou Lúcifer, ainda incomodado por aqueles inúmeros problemas que o cercavam: livro maldito; vinculação forçada à causa dos arcanjos; iminente rebelião; seu destino e o de sua família.

 

Ela nos achará, pode ter certeza disso. – Silêncio absoluto na sala.

 

Estou sentido a presença de inúmeras feras dentro da casa e lá fora. Parecem sentinelas. – Observou desconfiado Samuel.

 

Oh! Não se preocupe querido. – Riu apaixonadamente. – São meus bichinhos de estimação. – Lúcifer notou que ela queria esconder algo. – Eles me ajudam a espantar homens de Amelot e os demônios enviados por Lilith.

 

No Inferno.

 

Caim, meu filho, fruto da conjunção proibida com Eva, aquele que foi capaz de matar o próprio meio-irmão e se condenou por toda a eternidade, como andas? E Asmodeus, a criatura mais cruel e devastadora de todos os tempos, eras e lugares, filho de Adão e de Lilith, a rainha do Súcubo. Como andas tua sanha pela destruição?

 

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Diante de Lúcifer, de Abigor, de Moloch, de Mammon e de Lilith, que além de um chapéu vermelho, trajava um belo vestido vermelho, cujo material assemelhava-se ao látex e que permitia uma bela visão de seu farto decote, estavam Caim e Asmodeus. O primeiro, com a queda de Lúcifer, foi feito prisioneiro, por seu próprio irmão, Mammon, que, ao assumir o poder, afastou todos os possíveis sucessores de Lúcifer. Prendeu Caim, sob a alegação de que ele era um ser impuro, meio demônio, porquanto seu sangue era maculado pelo sangue humano de Eva. Nefilins, seres oriundos da união entre demônios e humanos, não eram bem-quistos pela sociedade infernal. Caim, decerto, pretendia se vingar do seu irmão.

 

Asmodeus era outro demônio de origem não pura. Na verdade, ele não nasceu demônio, mas foi transformado quando jovem e tempestuoso, a pedido de Lilith, já transformada em demônio e corrompida pelos prazeres da promiscuidade. Foi aprisionado também por Mammon, porém não tinha um sentimento tão revanchista como Caim. Na verdade, Asmodeus queria destruir Mammon, Lúcifer, Metatron e todos ali na sala. O importante era matar e não ser morto. Tinha sede de sangue e mataria qualquer um sem pestanejar. Ele não precisava de motivos. Era um ser que transbordava testosterona.

 

Caim. Tu terás dez legiões. Invada o reino terrestre. Conquiste aliados humanos. Piratas, mercenários, governantes avessos à Igreja e a suas legiões de bandidos, todos serão bem-vindos, inclusive membros de outras religiões, avessas à Igreja. E diga que todos serão muito bem remunerados. Mammom dará toda sua riqueza para nossa causa e integrará suas tropas.

 

Mammon engoliu em seco e Caim sorriu levemente. “Toda riqueza?” Pensou Mammon, o demônio da avareza. “A riqueza que amealhei durante séculos? Não era justo!”. Ele teve o trabalho de matar, pilhar, roubar, furtar e enganar milhares de pessoas e demônios para ter seu pé de meia e para poder se orgulhar e se embelezar com inúmeros artefatos raros; bem como para engordar também. E não era só riqueza que possuía, mas peças de colecionador. Havia sentimentos ao lado dessa abastança toda. Entendia que não era tão materialista como diziam por aí, mas se podia acumular e gastar com exclusividades e bens supérfluos, por que não fazer? Suas esposas precisavam de muitos empregados, de vestidos e outras quinquilharias. Era um modo de vida caro que precisava ser financiado.

 

Integrará suas tropas”, tremeu Mammon ao lembrar da sentença. Lamentou que ali a desculpa esfarrapada para não ir à guerra, por motivos religiosos, não seria aceita, como ocorria na Terra. É claro que Mammon não era religioso e nem acreditava, como todos no Céu e no Inferno, em divindades e esoterismos, mas era uma boa maneira de terráqueos fugirem de obrigações cívicas e nacionalistas sem serem questionados, porque, na Terra, por algum motivo desconhecido, religião não se questionava.

 

Arregimente cidades humanas para a nossa causa. A Terra será o campo de batalha principal. As cidades dos humanos nos servirão como peões e também como ponto inicial de nossas incursões rumo aos céus. Caso as cidades se recusem a nos apoiar, destrua-as. Acabe com todos, sem dó nem piedade. – Continuou o líder infernal. Não queria que humanos se aliassem ao Paraíso ou que fossem mortos por anjos, visto que suas almas serviriam de alimento para as tropas angelicais ao serem encaminhadas para o Paraíso.

 

Sim meu pai. Começarei por Amelot. Nossos demônios estão terminando de abrir o portal da Santa Sé. Basta alguns entulhos para serem removidos.

 

Distribua as milhões de almas que Mammon tem escondidas nos porões dos Inferno para abastecer nossas tropas. – As almas de Mammon eram sua maior riqueza, pois eram os alimentos dos demônios errantes e desorganizados. Estes precisavam oferecer algo de valioso para o filho de Lúcifer, normalmente quinquilharias, ouro e outros bens materiais, para que pudessem se alimentar, sem se exporem no plano terrestre e sem serem incomodados pelos celestiais. Como as almas dos mortos pela arma de um demônio iam diretamente para o Inferno, pois no plano terrestre os demônios, assim como os anjos, não poderiam delas se alimentar, Mammom criou um sistema de coleta, seleção e armazenamento de almas muito eficiente. Era o principal fornecedor de almas orgânicas para o Paraíso, ficando apenas atrás do Purgatório, órgão oficial de controle, para onde iam as almas de pessoas e animais que não eram mortas por demônios ou anjos. Assim, extorquindo demônios e vendendo almas para o Paraíso, cada vez mais consumista e exigente com relação à qualidade das almas, Mammon enriqueceu. Todavia, agora, Lúcifer determinara que seu ouro fosse dado aos seres humanos aliados e que as almas de Mammon fossem distribuídas entre os soldados infernais. Seu negócio estava arruinado. Certamente perderia as inúmeras esposas que tinha.

 

Asmodeus, filho de Adão e Lilith, demônio destruidor, tu tens alguns trabalhos especiais. Acompanha a vadia da tua mãe e traga minha mulher, Esmeralda, filha de Klepoth, a depravada, bem como a própria depravada. Destrua todos os arcanjos traidores do Paraíso, pois eles estarão com ela. Mate também Lúcifer, não eu, evidentemente, e dê o Grimório para Caim, para que seu trabalho de angariar humanos para nossa causa se torne mais fácil. Depois terás a sua disposição setenta e duas legiões para o ataque final ao Paraíso.

 

Asmodeus assentiu, sem falar nada. Queria mandar Lúcifer se foder e arrebentar a cara celestial dele, mas não tinha poderes para derrotá-lo, por isso preferiu ficar em silêncio e aceitar aquela missão que julgava esdrúxula.

 

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Vamos filho, vamos cumprir todas essas tarefas. Banharás tuas mãos em sangue. – Disse a rainha do Súcubo.

 

A belíssima Lilith deixou o salão e logo atrás dela foi seu filho, Asmodeus, o destruidor, que ameaçava de morte quem passava por sua frente. Não era incomum arrebentar, matar ou mutilar algum demônio ou qualquer tipo de criatura repentinamente, sem motivos. Se tropeçava, precisava punir alguém. Em geral, fazia ataques rápidos e letais que dilaceravam os pobres alvos de seus arroubos destrutivos.

 

Apesar de ser a mãe da criatura, Lilith não demonstrava muito afeto e não se importava com o destino dela, pois Asmodeus era uma memória viva de seu passado terrível.

 

“Adão acordou.

Os raios solares teimavam atravessar a folhagem irregular da copa das árvores, submetida à suave força eólica. O vai e vem das folhas e o cálido zunido do vento eram constantes e intermediados pelos cantos de pássaros de diversas espécies.

O sol beijava a face de Adão e lhe dava energia e ânimo para se levantar. Sentado ao chão, viu esquilos e pequenos animais selvagens em seu limiar, ao longo do horizonte verdejante e orvalhado. Os troncos das árvores eram como robustas cidadelas habitadas por milhões de insetos e dezenas de bichanos. O clima aprazível era compatível com a nudez de Adão, que não sentia nem frio, nem calor.

Depois de uma rápida ambientação, depois de sentir o perfume das flores, depois de ser agraciado pela maciez da grama exuberante e fofa, depois de contemplar o esplendor do Sol, depois de se admirar com o bem-estar que aquele paraíso lhe proporcionava, Adão, ainda sentado, passou a olhar para si mesmo.

Olhou os pés e as pernas e percebeu que podia controlá-las; olhou para suas mãos e para seus braços e da mesma forma constatou que podia controlá-los. Esses membros se moviam, parecendo obedecer a seus comandos e, de fato, após algum tempo de reflexão, chegou à conclusão de que realmente os controlava. Então viu um pequeno membro mole entre suas pernas, mas não podia controlá-lo, apenas tocá-lo. Não sabia qual a função da extensão corporal inerte. Olhou para a barriga e para o peito. Colocou as mãos no rosto. Sentiu que sua face era tateada pelas próprias mãos. Então aferiu que tudo aquilo que podia ver, membros, barriga e peito, e tudo aquilo que sentia – o toque de suas mãos no próprio rosto, a ação do vento sobre todo seu corpo, o clima ameno e os raios solares que lhe beijavam a pele – era ele.

Naquele momento Adão se reconhecia como um indivíduo, um ser pensante, um ser vivo e racional, embora não tivesse ideia das implicações disso.

Levantou-se, com certa dificuldade. Em segundos, após uma ou duas quedas, que lhe ensinaram o que era dor física, aprendeu a andar. Andou para onde os olhos miravam e subiu uma colina onde havia uma árvore carregada de maçãs. No topo dela, viu um lago de águas translúcidas. O apanhado de água despertou sua atenção. Foi de encontro ao bolsão de água cristalina.

Ajoelhou-se para tocar o líquido, mas antes que o tocasse, viu uma criatura dentro da água, assustou-se. Deu dois passos para trás. Tomou coragem e, com cautela, voltou ao pé da margem do lago. Olhou e novamente viu uma cabeça embaixo da água. Como tal cabeça era tão cautelosa como ele, foi baixando lentamente. Estendeu o braço para tocar o líquido. Assustou-se um pouco, pois notou que um braço também parecia sair de dentro da água, mas mesmo assim prosseguiu. Tocou o líquido e logo as imagens da cabeça e do braço se turvaram. Após algum tempo de interação com as águas do lago, concluiu que aquela cabeça dentro da água nada mais era do que um reflexo dele. Percebeu que aquela imagem era uma cópia sem corpo e sem alma dele próprio, o que o fascinou. Também tomou ciência de que água era algo muito bom: refrescava sua nascente sede, limpava seus membros e deixava uma deliciosa sensação de frescor quando em contato com a pele.

Passados alguns dias de aprendizado e de novidades, interregno em que aprendeu a se alimentar, a fazer necessidades, e tudo o que precisava para se manter vivo e com saúde, sentiu um vazio interno muito grande dentro do peito. Não sabia o que era. Nos seus poucos dias de vida, o homenzarrão nunca sentira aquela sensação, que não era satisfeita de forma alguma, não importava o que ele fizesse.

Além disso, aquele membro mole que tinha entre as pernas, às vezes ficava duro, mas ele não sabia a razão disso. Havia um formigamento constante quando o membro ficava ereto, mas Adão não sabia o que fazer. Por vezes coçava o membro, em outras brincava com ele, mas aquilo o irritava, pois não encontrava uma finalidade ou explicação para o fenômeno. Quando acontecia costumava mergulhar no lago até o membro amolecer. Às vezes a volta à normalidade era rápida, às vezes demorava o dia inteiro para que ocorresse.

Neste meio tempo, também notou que muitos animais da mesma espécie andavam em duplas, mas tais pares de bichanos ostentavam pequenas diferenças. Como corolário lógico, também atentou para o fato de que estas duplas copulavam. Em geral, um, aquele que tinha um membro entre as patas, montava sobre o outro. Adão achava estranho tal comportamento. Não sabia por que os animais faziam isso, apenas tinha ciência de que os que tinham um pequeno membro no ventre o enfiavam freneticamente no ânus daquele que não tinha.

E assim os dias se sucederam, até que em determinada data ouviu uma saudação vinda de alguém que se aproximava por trás:

– Oi.

– Oi. – Respondeu automaticamente Adão ao se voltar para a origem do som. Aprendeu neste momento uma nova funcionalidade para sua boca: a fala.

Adão ficou estupefato com a beleza daquela criatura. Em certos aspectos, assemelhava-se a ele, e em outros se diferenciava. Lilith, como depois veio a ser conhecida, era menor em estatura, aparentemente mais fraca, mas muito mais bonita e com muitas curvas. Possuía membros bem torneados, um rosto encantador e cabelos longos. Também ostentava dois belos seios no peito e não tinha o membro mole que tanto lhe preocupava. Ficou mais maravilhado ainda, porque, depois de tocá-la e ser tocado, percebeu que ela não era como sua imagem no lago, ela era real. Lilith assemelhava-se a ele: era de carne e osso.

Automaticamente, aquele vazio constante que sentia dentro do corpo foi embora. Agora tinha uma companheira. Em poucos dias, ambos desenvolveram a fala – ela foi mais rápida. Fizeram muitas coisas juntos. Comiam, tomavam banho juntos, corriam e rolavam pela grama. Entretanto, a dúvida que Adão tinha foi transmitida para Lilith. Ambos não entendiam porque o membro mole de Adão às vezes ficava duro e molhado.

Lilith, curiosa e corajosa, passou a tocar o membro de Adão com força. Apertava, puxava, empurrava, achando engraçado que aquela coisa ficasse dura e mole. Adão gostava. Os testículos eram poupados, pois seu manuseio causava incomodo ou dor em Adão. Perceberam que a simples presença de Lilith deixava o membro mole de Adão rígido. Logo, Lilith passou a chupá-lo, o que trazia grande prazer e felicidade para Adão. E entre uma chupada e outra, Adão teve uma ideia. Imitaria os animais silvestres. Ele mostrou a Lilith dois castores copulando e disse que queria fazer o mesmo. Tocou no seio da moça, o que dava imenso prazer a ela, e juntou o seu corpo ao dela. Logo seu pênis, como vieram a chamar o membro mole de Adão, ficou ereto como nunca havia ficado antes. Adão deitou Lilith na grama e queria que ela ficasse de quatro para imitar os castores, mas Lilith, esperta que era, preferiu ficar deitada com as costas para o chão.

Disse, para se justificar, que o buraco da frente, ao qual posteriormente foi dado o nome de vagina, era maior do que o de trás e que deste saía excrementos. Adão, mesmo contrariado, porque não poderia imitar os animais, aceitou. E ambos conheceram o sexo.

Logo, ambos, que se gostavam muito, passaram a transar todos os dias, várias vezes ao dia, e logo vieram as variações. Todavia Adão jamais permitiu que Lilith ficasse por cima e cada vez mais insistia em pegá-la por trás, como os animais. Lilith, desgostosa, aceitou. Ficou de quatro e a dor foi imensa. De outra banda, Adão adorou, disse que a dor era só no começo, o que, de fato, era verdade. Lilith se acostumou a ficar de quatro para satisfazer a cada vez maior lascívia do companheiro. Quanto mais sexo fazia, mais Adão queria. Lilith adorava transar, mas já não suportava o companheiro. Ela queria conversar, queria se divertir e queria carinho também.

Além disso, a mulher queria ficar em cima, mas Adão era irredutível e como era mais forte, sua vontade prevalecia. A paciência de Lilith, que dia após dia aceitava as exigências de Adão, foi acabando. Não sentia mais tesão na transa e isso repercutia na ausência de lubrificação na sua vagina e, consequentemente, na dor ao fazer sexo.

Resolveu dar um basta nisso.

– Basta!

Virou as costas, mas Adão, que já andava irritado com as atitudes de Lilith, que inexplicavelmente não gostava mais de fazer sexo e que insistia em ficar em cima dele, pegou-a pelos braços. Lilith tentou se desvencilhar, mas não conseguiu, e, depois de uma breve luta corporal, Adão conseguiu controlar a companheira. Adão a achou linda chorando e se debatendo, tentando agredi-lo…

Depois do coito forçado, Lilith fugiu. Adão, cansado pelo estupro que acabara de realizar, não ligou. Tinha certeza de que Lilith não poderia ir longe e que mesmo que fosse, voltaria, pois sexo era algo tão bom na sua concepção que não entendia como sua companheira podia complicar tanto as coisas.

 

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Todavia, as horas passaram e a noite caiu e nada de Lilith voltar. No dia seguinte, Adão resolveu procurar sua mulher. Nada encontrou. No dia posterior, também não. O Paraíso, como viria ser chamado aquele lugar maravilhoso, era muito grande.

Adão estava nervoso. Estava sem sexo. Precisava de sexo. Era seu vício e sua única fonte de entretenimento naquele mundo perfeito. Os dias se passaram e nada da garota. A masturbação compulsiva, que deixava feridas em seu pênis, já não o satisfazia como antes, nos primeiros dias da ausência de Lilith. A zoofilia não dava certo. Além disso, voltou a sentir o vazio dentro do peito. Achava que esse vazio decorresse da falta de sexo, mas naquele momento, sozinho, à procura de Lilith, já não tinha mais certeza disso.

Cansado de procurar, perdeu as esperanças. Porém, algo inusitado ocorreu. Uma serpente lhe falou:

– Procura por água e alimentos em abundância e acharás o que procuras.

Adão, então, procurou Lilith em todos os lagos, lagoas e rios do Paraíso e, à margem de um desses rios, encontrou a fugitiva. Estava furioso e ávido por sexo. Pretendia lhe dar uma bela lição para que não fugisse mais e para que cumprisse com sua obrigação de lhe dar prazer sem frescuras, de forma submissa e sem reclamações.

Lilith estava de costas para seu algoz, mas um milagre, ou o sexto sentido dela, fê-la perceber no último momento a aproximação do malfeitor. Por meio de um rápido movimento bateu em Adão com um pesado galho de árvore. Adão, surpreendido, protegeu-se com o braço, que foi severamente danificado. Mesmo assim, levantou-se e investiu contra a moça, que tentou dar um segundo golpe nele, sem, contudo, obter sucesso. Adão caiu sobre a moça que, intencionalmente ou não, no calor da batalha, acertou-lhe um chute nos testículos. Adão rolou para o lado de dor. Tentou se levantar mas caiu. Lilith, célere, correu, com sua arma improvisada, para a árvore mais próxima. Escalou-a. Adão, ainda com certa dificuldade, veio no encalço da heroína e tentou subir a árvore, porém, ao tentar se apoiar em um dos galhos da árvore, teve a mão atingida por um poderoso golpe, que quase lhe quebrou um dos dedos.

E assim ambos ficaram: Lilith sobre a árvore, munida de seu galho, e Adão, cheio de machucados e dores, embaixo. A vítima, por um segundo, gostou dessa situação. Finalmente estava por cima e, de certa forma, conseguiu retribuir as agressões de Adão se valendo de seu galho e de seu joelho.

Mas logo, a situação mudou. Adão era quem sorria e Lilith entrava em desespero.

– Uma hora você terá que descer. – Avisou Adão.

Adão, sempre com um olho em Lilith, dirigiu-se ao rio. Tomou água, cuidou de suas feridas e se alimentou. Também pegou um galho, mais pesado do que o de Lilith, e algumas pedras. Levou-os para o pé da árvore. Lilith, cansada, a tudo observava, apreensiva e apavorada. Adão andava de um lado para o outro carregando dois ou três pedregulhos, sorrindo maliciosamente. Fazia menção de que em breve, caso Lilith não desistisse de sua loucura, atiraria pedras na sua propriedade até que ela saísse ou caísse do baluarte improvisado.

Adão virou uma criatura perversa e possessiva.

Lilith estava acuada, sem saída, mas Adão cometeu um erro. Certo de que estava tudo sob controle, certo de que logo daria uma lição em Lilith e certo de que logo teria sua escrava sexual novamente, deitou-se ao pé da árvore, para tirar um cochilo. Antes avisou a Lilith que assim que acordasse de seu breve sono, ela deveria sair da copa da árvore, pois caso contrário seria derrubada a pedradas.

– Burro! – Sussurrou Lilith.

Poucos minutos depois que Adão se deitou convicto de sua vitória, ela pulou sobre o peito dele. A queda foi grande. Adão, ao ser atingido, retorceu-se de dor. Sua costela trincou, faltou-lhe ar e de sua boca saiu sangue. Lilith caiu com os dois pés sobre o seu algoz, entretanto, a aterrissagem não foi perfeita. Pousou desequilibrada e torceu o pé, mas mesmo assim correu, mancando, o mais que pode. Estava apavorada. Seu galho ficou para trás junto com a fúria de Adão que a jurava de morte, enquanto, ainda com muitas dores e tresloucadamente, tentava atingi-la com as pedras que havia recolhido. Por sorte, estava sem forças e pontaria.

Depois disso, Adão nunca mais viu Lilith nem a serpente que o ajudou. Nos primeiros dias, pretendia matar sua ex-parceira, mas com o tempo a sensação de vazio voltou a seu peito, peito aquele em que se encontrava sua costela ainda trincada. Eram duas sensações insuportáveis. Logo, Adão percebeu que precisava de Lilith e que a sensação de vazio era a solidão, a falta de afeto e de amor.

– E ela só queria ficar em cima. – Pensava angustiado e aflito.

Adão não comia e não bebia água. O Paraíso, antes belo, agora lhe parecia morto e sem finalidade. Sentia inveja e tristeza quando via animais copularem. A masturbação virou sua companheira impiedosa. O que antes era um passatempo para ele e para Lilith, agora era uma necessidade que o fazia sentir culpa cada vez que ocorria.

Foram meses, talvez anos, de solidão, sentimento de culpa e buscas frustradas por Lilith. Queria pedir perdão. Sentia a falta não só do sexo, mas da companhia também.

Caiu de joelhos no chão, gritou o mais alto que pode, pediu por ajuda, ergueu os braços e logo desmaiou. Quando acordou, levantou-se disposto. Não sentia mais dores no peito. A costela trincada lhe fora retirada. Mas isso não foi a causa de maior surpresa. A sua frente viu estendido o corpo de uma mulher.

– Lilith!

Correu em direção à moça e, com os olhos marejados, ergueu a cabeça da mulher, afastando os cabelos que lhe escondiam a face. Espantou-se ao perceber que não se tratava de Lilith. Era outra mulher, tão bela como sua primeira namorada. A misteriosa garota abriu os olhos e sorriu delicada.

– Oi. – Disse displicente.

No seu íntimo, Adão sabia que alguém lhe dera uma segunda chance, oportunidade que não pretendia deixar passar. Emocionado, jurou a si mesmo que respeitaria as sugestões e desejos de sua nova consorte…

Por seu turno, Lilith, depois da fuga, andou dias e dias. Comeu mal e evitou ficar próxima a rios, lagos e lagoas, até encontrar os limites do Paraíso. Embora a paisagem de fora fosse avermelhada, nebulosa e em muitas partes sombrias, saltou para fora dos portões sagrados daquele lugar em que vivera momentos mágicos e aterradores com Adão.

Manca, esfomeada, nua em um ambiente cujo clima era frio e chuvoso, assustada, sem esperanças e em território estranho, tormentoso e nocivo, Lilith avançou sem rumo e agonizante depois de tantas provações. Nos últimos lampejos de vida, caída sobre as raízes de uma árvore, foi cercada por demônios. Estes a levaram para uma caverna onde ela recobrou suas forças e sua beleza para, então, depois de muitas orgias, nas quais sempre ficava em cima, ser apresentada a seu futuro marido, Lúcifer. Este lhe atribuiu a beleza e a juventude eternas.”

 

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Enfim, Lilith foi parte de um experimento sociológico terrível das criaturas celestiais, lideradas por Metatron, que deu origem a Asmodeus. Não era para ter tido aquele rebento, hoje sinônimo de destruição. Acreditava o demônio feminino que o filho era violento e mau-caráter em razão da herança genética oriunda do pai. Para ela, o amor maternal não existia, pois lhe trazia péssimas lembranças. Há milênios, limitou-se a pensar em si própria e em suas necessidades, normalmente supridas por Lúcifer.

 

Tamanha carga emocional, oriunda de um capricho de Deus, tornou a história da outrora mulher em lenda no Paraíso e no Inferno. Na Terra, porém, essa história não era considerada uma lenda, mas sim uma verdade inquestionável e uma justificativa irracional da Igreja para o domínio masculino sobre o feminino.

 

 

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Caim também deixou a sala e lançou um olhar de morte para Mammon. Sua vingança seria longa e dolorosa. Em condições iguais, o demônio da avareza não tinha qualquer chance contra ele.

 

Moloch, as entradas para o Inferno? – Exigiu a informação o soberano.

 

Estão todas muito bem vigiadas, meu senhor. Não temos contingentes em todas elas, mas, nas entradas menos importantes, temos demônios espiões que nos informarão rapidamente sobre qualquer tipo de tentativa de invasão. Saliento que as entradas principais estão todas bem guarnecidas por um contingente enorme de legiões que cresce a cada minuto. Todos os demônios, dragões e seres que de alguma forma odeiam o Paraíso estão se deslocando rapidamente para as entradas de teu reino. Em poucos dias, triplicaremos o nosso exército.

 

Ainda assim temos problemas. Metatron, mesmo rodeado por inimigos, tem um exército muito numeroso, maior e mais bem preparado que o nosso. Por enquanto, não poderemos atacá-lo frontalmente de igual para igual. Teremos que conquistar inúmeros aliados e estabelecer uma forma de resistir a eventual invasão ao Inferno. Infelizmente, nestes séculos em que estive ausente, o Inferno teve um regente incompetente, que enfraqueceu a unidade dos anjos caídos, que provocou a evasão de tropas e que pilhou seu próprio povo. Mammon, – disse Lúcifer sem olhar para a cara de seu filho – seu patético e hipócrita sovina, abra os cofres e entregue a Caim suas riquezas para que o fratricida corrompa os corações humanos. Vá, gordo nojento.

 

Sim, querido amo. – Respondeu o tartufo demônio.

 

Mammon saiu contrariado do salão. Odiava o pai, mas o temia e seu temor era maior do que seu ódio e sua competência para fazer qualquer coisa contra aquele titã. Maldito corrupto.

 

Abigor, general maior das tropas satânicas e segundo no comando, como andam os preparativos para a guerra?

 

Mestre, eu estou treinando o máximo de guerreiros que posso e nossos vulcões trabalham no nível máximo. Estamos, inclusive, forjando armas no Lago de Fogo, para que elas sejam mais resistentes e poderosas. Porém, temo pela falta de comida para alimentar este crescente contingente de soldados, se a guerra se alongar por muito tempo. Ela deve ser rápida.

 

Isso não será problema a médio prazo, Caim teve ordens para eliminar todos os seres humanos que não aderirem à nossa causa. Logo, as almas destes cairão automaticamente no Inferno assim que mortos por nossas legiões e nos servirá de alimento. Haverá fartura de alimentos para nossas tropas. Agora me diga sobre o Lago de Fogo.

 

Senhor, as armas que são forjadas lá ou as que são reformadas com sua lava possuem maior poder. Tal lição passou a existir entre nós, demônios, há pouco tempo, cerca de duzentos anos. A lição nos foi passada por Klepoth, a depravada, detentora de inúmeros conhecimentos científicos herdados de cientistas e engenheiros celestiais e demoníacos que caíram em seu leito e que lá morreram. A “O poder das sete estrelas” lá foi banhada. Precisamos banhar a “666” o mais rápido possível. – Lúcifer olhou para a espada trincada, danificada pelo embate inicial que teve com Metatron. Ele tinha uma vantagem.

 

Sim, se a “666” ficar mais poderosa, tenho certeza de que poderei sobrepujar Metraton e “O poder das sete estrelas”. – Depois pensou na virtude.

 

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Nos últimos anos, antes de seu retorno, muitos demônios forjaram e banharam suas armas no Lago de Fogo. – Relatou Abigor.

 

Klepoth…

 

CONTINUA…

 

Leiam A Nova Teogonia Livro I e Livro II, de minha autoria.

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Aviso: Lúcifer e a conspiração dos arcanjos em formato papel

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Olá, estou passando para avisar que vou mandar fazer umas 50 ou 100 cópias do Lúcifer em formato papel, sem prejuízo de continuar a história aqui e deixá-la na íntegra no blog por longos meses (pretendo acabar de publicá-la no início de dezembro deste ano), afinal de contas já está registrada na Biblioteca Nacional. Quero dar alguns exemplares do livro para meus amigos religiosos (católicos) e, em especial, para um amigo meu judeu para quem escrevi esta história e que foi o que mais me estimulou a criá-la, embora ele não esperasse a conotação ateia e antirreligiosa da obra, rs. De todo modo, ele e minha esposa católica já leram o livro todo e gostaram. O restante dos exemplares, vou vender, doar ou permutar, como estou fazendo com os volumes 1 e 2 da “A Nova Teogonia”. Não vou fazer mais do que 100 cópias do Lúcifer, pois dá um trabalhão vender e porque ocupará muito espaço aqui em casa. Além disso, ao fazer o livro no formato papel, quero me imortalizar, deixando algo para a Humanidade além de trabalho, memórias e, possivelmente, filhos e acho que um livro é uma das formas mais eficazes para a imortalidade. Daqui uns anos, as pessoas que verem meus livros na prateleira ou em algum canto de suas respectivas casas vão automaticamente se lembrar de mim =) Quero escrever pelo menos mais três livros antes de morrer (tenho 33 anos hoje). Já escrevi “A Nova Teogonia” e “Lúcifer e a conspiração dos arcanjos” e fiz rascunhos de outras duas obras, sendo uma delas uma Space Opera, cujo objetivo é ser uma ode à ciência e que será dedicada exclusivamente ao meu falecido pai, que adorava astronomia, assim como eu adoro. Enfim é isso. Se tudo der certo, “Lúcifer e a conspiração dos arcanjos”, em formato papel, ficará pronto provavelmente em janeiro do ano que vem e vou vender a preço de custo para desconhecidos que queiram a história. Escrever histórias é uma das poucas coisas de que gosto neste mundo, por isso “desperdiço” meu dinheiro e tempo com isso =)

 

Abraços!

 

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Leiam A Nova Teogonia Livro I e Livro II, de minha autoria.

A Nova Teogonia tem na Livraria Cultura também!

Eis o panteão nórdico, um dos panteões protagonistas da “A Nova Teogonia”, onde intrigas, golpes e guerras entre divindades foram uma constante racional:

 

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Até o final do ano, eu coloco um trecho da “A Nova Teogonia” aqui no blog novamente.


Lúcifer e a conspiração dos arcanjos – Parte 13

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Vide parte 12

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Venham crianças. – Dirigiu-se à Esmeralda e Lúcifer. – Quero apresentar meus bichos de estimação. Samuel e Gabriel, eu já volto para partirmos.

 

Volte rápido, megera, as circunstâncias urgem celeridade. – Exasperou-se Gabriel.

 

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Klepoth gargalhou.

 

Gosto de você Gabriel, é tão… autêntico. Parece Lúcifer. Ah! – Olhou para o necromante, não pretendia ofendê-lo. – Não é você querido, é o outro. Você é uma gracinha. – Apertou a bochecha do rapaz que ficou se perguntando se não era autêntico.

 

O arcanjo Gabriel enrubesceu. Pela primeira vez em dias, quiçá semanas, transmitia algum sinal de que possuía sentimentos em seu coração.

 

Assim, Lúcifer e as mulheres deixaram a sala, e, então, Samuel comentou:

 

Nuvens negras estão se multiplicando no horizonte.

 

Sim, Samuel. Precisamos ser rápidos. Tu ainda achas que a depravada será útil?

 

Não sei, mas, ainda que não seja, talvez possa aderir à nossa causa além de nos ter dado a pedra fundamental da conspiração. Estamos muito vulneráveis em meio a dois exércitos que querem nos eliminar. Conseguimos ser inimigos de ambos os lados e ela, mesmo nessa decadência de vida, é uma virtude. Em tese, tem muito poder.

 

Ela é estúpida e fútil. Não creio que seja de grande valia. É provável que com suas maluquices revele nossa posição e mesmo o engodo final. Precisamos voltar logo para junto de Ezequiel e Jofiel.

 

Nossas tropas nada farão enquanto não nos forem dados os sinais e acredito que isso ainda vá demorar. As tropas no Paraíso ainda não começaram a se movimentar. Não sei o porquê, mas essa demora me preocupa.

 

E se ele falharem?

 

Prefiro não pensar nisso… Gabriel.

 

Sim.

 

Não chame mais Klepoth de depravada, ok?

 

O pedido de Samuel causou estranheza em Gabriel e ilações surgiram a partir daí. “Isso poderia ser um problema”, pensou o arcanjo Gabriel.

 

Filha querida, são tantas coisas que precisamos contar uma para a outra. Nem pude ver o seu crescimento. Gostaria de te ver envelhecer, gostaria de saber como vou ficar daqui a alguns milhares de anos. – Gargalhou a virtude caída, alegre pelo pouco de felicidade que fruía naquele dia. – Brincadeirinha. Falando sério, abandonar você com aquele assassino do seu pai foi uma decisão dolorosa, mas necessária. Tive que escondê-la de Lilith. Ela sempre quis minha cabeça e fará qualquer coisa para me atingir e nisso inclui matar meus queridos filhos. – E baixando o tom de voz, arrematou. – Puta sem vergonha.

 

lilith

 

Esmeralda respirou fundo. Percebeu que o vocabulário da mãe não era dos melhores.

 

– Mãe, o que significa esses escravos? Por que tens a alcunha de depravada? E por que eles temem a senhora?

 

Filha, é uma longa história, vamos deixar para outra hora. – Respondeu evasiva.

 

– Mãe. – Começou devagar. – Isso não é certo. Acredito que deve libertar esses homens, eles…

 

Como ousa?! – Gritou furiosa a bruxa, em um misto de fúria e perdimento. – Eles são meus escravos. Eles me satisfazem e me auxiliam. Não posso abrir mão deles. – Disse resoluta. –  E quando eu voltar? – Klepoth podia fazer todo o serviço da casa, sozinha, pois não tinha limitações físicas nem de tempo. Não precisava usar o trabalho alheio por mero capricho. Esmeralda queria explicar isso para ela, mas a mãe era cabeça dura demais e já estava acostumada a viver no ócio, valendo-se da mão de obra barata alheia.

 

– Mãe! – Interveio gravemente Esmeralda.

 

Desculpe-me filha. Eu não sei o que acontece comigo. Acho que sou uma depravada mesmo. – Lamentou-se desanimada. – Eu estou há tanto tempo procurando por alguém especial, mas… eu não encontro. Nesses últimos séculos, a solidão foi tão grande. – Lágrimas correram de seu rosto. – Eu juro que tentei, mas todos os homens que apareciam só queriam sexo. Eu nunca quis ser um objeto sexual, mas o comportamento masculino… Eu não sei viver só. Preciso ser amada. Preciso de atenção, como eu tinha no Paraíso. – A virtude caída desatou a chorar, pois estava emocionalmente indefesa naquele momento.

 

Há séculos não desabafava. Não havia conhecido uma outra mulher capaz de entender seus sentimentos. Tentar conversar com os homens era uma perda de tempo. Eles não a entenderiam ainda que tentassem. Não conversavam com ela. Queriam matá-la ou transar com ela, só isso. Seus sentimentos de nada valiam para eles. Suas palavras entravam por um ouvido e saíam por outro.

 

Klepoth era uma ninfomaníaca, mas ainda assim tinha seus valores e exigia respeito. Não queria ser tripudiada. Não queria ser objeto de ódio de homens, mulheres, anjos ou demônios. Queria amor e sexo, mas só conseguia este último, fosse se valendo de sua beleza estonteante e da cobiça do sexo masculino, fosse obrigando e escravizando dezenas de rapazes. Os anos se passavam e nada mudava, só piorava. Foi acumulando inimigos. Seu coração se recrudesceu e passou a ser insensível, cada vez mais. Aqueles serviçais masculinos passaram a ser vistos como meros objetos de deleite e de ódio ao mesmo tempo. Seu coração era duro como uma rocha, nem mesmo pequenos e passageiros casos amorosos rendiam amor verdadeiro. Era comum fugir de um local para o outro. Negar a rotina e correr dos ataques da sociedade moralista, machista e conservadora eram sua sina. Não bastasse isso, havia a rivalidade com Lilith. Suspeitava que a vagabunda tinha destruído a mente de muitos de seus pretendentes e possíveis amores, invadindo seus sonhos. Ela a perseguia. Nem sempre conseguia livrar a mente dos seus objetos de desejo das tramoias de Lilith. A rainha do súcubo invadia os sonhos de todos os “machos” de Klepoth, destruindo sua mente ou sussurrando mentiras e incertezas no subconsciente dos homens. Inoculado o veneno na psique, as vítimas ou fugiam ou broxavam ou repudiavam Klepoth que, indignada, acabava matando-as. Por que os homens eram tão suscetíveis aos encantos femininos? Muitos foram mortos assim, em um momento de fúria. Uma criatura que poderia viver eternamente, caso não fosse morta, entre mortais frágeis não era uma boa ideia.

 

Esmeralda aproximou-se da mãe e abraçou-a. Estava com pena daquela pobre alma. Klepoth, já em sonoro choro, continuou sua catarse:

 

Fui expulsa do céu, pois Metatron me acusou de ser uma ninfomaníaca sem qualquer senso moral. Desci à Terra, mas aqui também tive os mesmos problemas. Inocente e com a autoestima lá embaixo, procurei entre os humanos alguém que satisfizesse minha necessidade sexual e minha carência afetiva. Procurei alguém entre homens e mulheres, mas eles e elas não aguentavam. Tentei com demônios, com vários homens. Fiz várias orgias, mas nada era duradouro, nada me satisfazia completamente, nada me preenchia, sempre me sentia insegura, então me relacionei com equinos, búfalos e mamutes…

 

Nessa parte do relato, os olhos de Esmeralda e de Lúcifer se arregalaram. Era difícil imaginar a cena.

 

O choro, neste ponto do relato, era desenfreado. Agarrada à filha, Klepoth, que não podia mais ficar de pé sozinha, continuou seus lamentos:

 

Nos últimos séculos, a Igreja passou a me caçar. Passei a me defender (snif), mas os homens sempre voltavam para me atacar, então comecei a matá-los. Fiquei sozinha. Quase entrei em depressão. Nos últimos anos, resolvi escravizá-los e incutir (snif) o terror que eles sempre incutiram em mulheres como eu e em mulheres inocentes que foram queimadas e mutiladas covardemente em cruzadas e julgamentos simbólicos. Era uma vingança de origem histórica. Não tive apoio nem de mulheres inteligentes e feministas, que, incompreensivelmente, iam à missa escutar o discurso de um machista por definição. Acho que elas foram doutrinadas desde pequenas e tinham medo dos pais repressores. – O choro embargado passou a ser a liberação de ódio reprimido. – Todos esses homens que aqui se encontram são aventureiros ou soldados a serviço da Inquisição. Não há inocentes aqui. – Justificou-se.

 

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A bruxa sentou cansada. Esmeralda e Formol se entreolharam. Não sabiam o que dizer nem como consolá-la.

 

O PAPA NO PARAÍSO

 

– Metatron, aqui está o Papa, autoridade maior da Igreja, e o principado que atuava junto a ele, Daniel.

 

Metatron olhou com nojo para a figura do Papa, cujo nome era Bórgia. Não fosse pelo propósito escuso que o salvamento garantia, teria punido o principado por trazer um ser humano para o Paraíso. Daniel havia salvado dos escombros o chefe da Igreja, curando suas hemorragias, embora o religioso tivesse atribuído a preservação de sua vida à Nossa Senhora de Fátima, e não à Nossa Senhora da Anunciação, Nossa Senhora Auxiliadora, Nossa Senhora da Estrela, Nossa Senhora Menina, Nossa Senhora de Nazaré, Nossa Senhora do Rosário etc. – que no final das contas e para a Igreja, pasmem, eram todas a mesma pessoa. Daniel ficou um pouco chocado por ter salvado aquela vida circunstancialmente útil para o Céu e ainda assim não receber o devido agradecimento. Segundo o Papa, pródigo em flertar com o politeísmo para garantir o aumento do rebanho, a todos agradando, Nossa Senhora de Fátima havia desviado milhares de toneladas de concreto dele, de forma a causar um ferimento que pudesse ser reparado por Daniel ou por um corpo clínico qualquer.

 

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Afora esse desgosto por não ter o reconhecimento que merecia, Daniel também estava muito debilitado, mal podendo fazer reverência ao senhor do Paraíso, o todo poderoso Metatron, e ao seu filho, que estava sentado à direita do pai. Daniel foi trancafiado quando da invasão à Santa Sé organizada pelos arcanjos rebeldes e pelos demônios liderados por Abigor e Moloch, sendo, pois, o Papa, a única testemunha viva da totalidade dos acontecimentos. Todos os demais serviçais e todas as freiras que “trabalhavam” na Igreja, até onde sabia, foram mortos pela fuga tresloucada dos arcanjos ou pelos demônios.

 

O terráqueo olhava maravilhado para todo aquele lugar incrível. Durante a viagem para o palácio do Deus honorário, viu edifícios gigantescos e tropas de anjos por todos os lados. O lugar era extremamente grande, limpo e amplo. O Paraíso era uma cidade bem arquitetada e grandiosa, desenhada pela razão, não sendo um amontoado de nuvens brancas e fofas como imaginavam as criaturas subdesenvolvidas da Terra. Ao longo da cidade havia grandes jardins coloridos, de inúmeros tipos de flores, exóticas ou comuns, que não ficavam apenas em praças e em vias principais, mas também no topo das construções e mesmo flutuando entre os anjos. Viu almas e espíritos perambulando pela cidade ao lado de anjos e outros seres celestiais que não pôde classificar. Tudo era muito bem projetado. Todas as criaturas ali eram bonitas e pareciam estar em perfeita harmonia com o ambiente. Bórgia, embasbacado, balbuciou o termo “design inteligente” e sorriu para um dos anjos que o conduzia, entretanto, o condutor o repreendeu duramente.

 

Tudo o que o senhor está vendo, foi fruto do conhecimento e do saber científico. Precisamos de milênios de desenvolvimento e estudo para chegar onde chegamos. Tudo o que vê foi fruto de erros, tentativas, insistência e acertos. Foi fruto de trabalho duro! Assim como a evolução da vida na Terra, que durou bilhões de anos para dar origem às ovelhas, tudo o que você vê é fruto da evolução de nosso conhecimento. “Design inteligente” não existe. Basta observar as doenças genéticas que acompanham os seres vivos, que seu aparelho reprodutor está amalgamado com o excretor, assim como o digestivo e o respiratório estão juntos, que suas axilas fedem demais, pois não há ventilação adequada, e que se forma “queijo” entre suas pernas e suas bolas.

 

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O Papa sorriu um pouco envergonhado, um pouco surpreso. Resolveu deixar para lá o que o presunçoso anjo falava. Ignorante. A própria existência da criatura angelical negava aquela teoria da evolução e da tentativa e erro. O “design inteligente” era uma realidade comprovada e inquestionável.

 

Voltando a observar a paisagem, notou também que as ruas e vias aéreas estavam movimentadas. Não sabia se isso era normal ou se eram os primeiros sinais da guerra, que, dentro de suas limitações terrenas, entendia por apocalipse, que nada mais era do que uma visão relatada, de poucas páginas, escrita por um drogado, e que, na verdade, referia-se a um antigo império que caçava membros da Igreja primitiva. De toda forma, o Pontífice não se preocupou, pois sabia que o bem venceria, visto que Deus, em sua concepção, era perfeito e tudo podia, até subverter a lógica, o tempo, a matéria e o futuro. Era, enfim, a ilogicidade lógica. Ninguém entendia seus mistérios, mas sabia Bórgia que estava do lado certo! Enfim, Deus não poderia ser derrotado. Lúcifer era tão estúpido… Iniciar uma guerra que sabia não poder vencer. Babaca, deveria ler a Bíblia.

 

Em suma, para onde olhava, Bórgia se admirava, pois via uma estrutura grandiosa e complexa, fruto, segundo as palavras de seu condutor, de um grande feito da arquitetura, da ciência e da engenharia. Apesar das palavras do anjo, por alguma razão, o Papa tinha certeza de que tudo aquilo era obra de seu Deus, até porque a sua visão parecia estar envolta por uma leve névoa, como num sonho.

 

Mas o deslumbramento maior foi quando o Papa chegou ao palácio de Metatron, ficando perante ele. O visitante, que acreditava estar diante do Homem Invisível de quem tanto falava no plano terrestre, declarou, em puro delírio e se ajoelhando, que ficou impotente durante a invasão. Penitenciou-se.

 

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– Não pude fazer nada! – Tremulava de medo, temendo ser punido. E fazia o sinal da cruz inúmeras vezes, em sinal de devoção. Temia se dirigir diretamente ao chefe do Paraíso, embora na Terra tivesse por hábito ler um livro que, segundo o senso comum, que não podia ser questionado, porque religião não se questionava e legitimava tudo, inclusive discriminação; era a própria palavra de Deus.

 

Enquanto se penitenciava, explicou, murmurando, em meio a lágrimas de emoção, que auxiliou os arcanjos e os demônios visto que não teve outra opção e porque não sabia o que estava acontecendo exatamente. Externalizava todo o sentimento de culpa e de inferioridade idealizados por sua Igreja para arrebanhar o maior número de ovelhas passivas e pobres de espírito e de riquezas materiais. Sentiu na pele o que era ter a culpa empurrada goela abaixo.

 

Silêncio no salão.

 

– Fui obrigado! Sou um simples humano que teme o Senhor. – De tão inebriado pela emoção, mal conseguia colocar a empatia para funcionar. – Os serafins e os querubins que estavam no salão começaram a rir do convidado histriônico e de sua devoção ridícula.

 

Justificou-se o Papa dizendo que foi coagido e humilhado. Fez um escarcéu afirmando que teve medo da morte e pediu perdão por ter sido fraco e por não ter morrido por Deus, pelo pai todo poderoso, como deveria ter ocorrido.

 

– Fui coagido e humilhado… Tive medo de morrer. Perdoe-me, Senhor. Deveria ter morrido por Vossa Divindade, afinal conversamos diariamente ao longo de toda minha vida. Não deveria ter duvidado do Senhor. – Dizia o religioso enquanto se mantinha curvado. Metatron olhou para os lados encabulado e surpreso. Ele nunca havia falado ou conversado com o Papa ou com qualquer ser humano, até porque os desprezava. Então, Sitael lembrou-o de que os habitantes do plano terrestre tinham o hábito de conversar com um suposto deus, por meio de seus pensamentos, pois o considerava onisciente, onipotente, onipresente, transcendental, imaterial e atemporal, mesmo não tendo prova ou indício algum de sua existência. De fato, segundo se sabia da Humanidade, os milhões de indivíduos que seguiam a Igreja eram aconselhados a, ao invés de estudar, trabalhar e pesquisar, conversar com Deus por pelo menos algumas horinhas por dia. Ainda bem que não eram bilhões de pessoas conversando diariamente com a entidade cósmica, pois certamente ela ficaria sobrecarregada e aborrecida, pensou Metatron. Os membros da seita eram aconselhados a pedir perdão por ter cometido mais um pecado, porque eram reincidentes eternos, a pedir ajuda, a pedir um lugar no Céu e a pedir que suas preces fossem atendidas ao invés de buscar concretizá-las eles mesmos.

 

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Metatron ficou imaginando como seria esse deus se ele realmente existisse. Imaginava que a entidade deveria ser onisciente, onipotente, onipresente (como já era apregoado em sua propaganda de Estado), transcendental, imaterial, atemporal, pessoal e necessária, mas concluía que tais características, todas juntas, não era algo possível. Com efeito, pelo menos uma parte desse Deus do qual tanto falava o Papa deveria ter uma parte de material e temporal, pois do contrário ele não poderia intervir com onisciência, onipotência e onipresença em um universo material e temporal, e, assim sendo, deveria se submeter, pelo menos na parte material de seu ser, às leis da física. Do contrário, sem possuir uma parte constituída de matéria, como intervir no universo material? Como captar os sinais de energia, sendo assim onisciente, sem um receptor material? E esses sinais deveriam estar limitados à velocidade da luz! Seriam necessários infinitos receptores para que a onisciência fosse possível, então? Se assim fosse necessário, tudo ou quase tudo que estava no universo deveria ser um receptor? Assim a característica da imaterialidade estaria afastada? E como ser onipresente, se não constituído de matéria? Não havia como se detectar a presença do Deus da Igreja pelos seres temporais e materiais! Como tinham tanta certeza de que o Homem Invisível existia? Com esses questionamentos, Metatron chegava à conclusão de que ou o deus da Igreja é onisciente, onipotente, onipresente e material e temporal ou é imaterial, atemporal, inconsciente, ausente e impotente. Perguntava-se por que essa estranha gente, de sentidos limitados, não se restringia a ficar impressionado com a beleza do universo, buscando entendê-lo, sem precisar evocar uma entidade divina para “explicá-lo”. De fato, responder à questão de onde viemos com o argumento divino só complicava mais as coisas. Não só deveríamos agora explicar a natureza e sua origem, mas também a existência de Deus. Suas motivações ou falta delas, sua origem ou falta dela, seus objetivos ou falta deles. Teria ele nascido ou surgido já complexo? Sempre foi complexo? A pergunta é relevante, porque, para criar um universo complexo, o criador dever ser necessariamente complexo. Enfim, justificar as coisas com a palavra Deus, que tudo aceitava, porque plurissignificativa, nada significando, portanto, não contribuía em nada para desvendar a origem do universo.

 

Bórgia, ainda em sua catarse, afirmou que pretendia se redimir de seus pecados, oferecendo toda a estrutura da Igreja (cruzados e inquisidores) e toda a informação de que dispunha (registros públicos) sobre tudo e sobre todos. Por fim, ofereceu a própria vida em sacrifício.

 

– Colocarei os cruzados à sua disposição, a Inquisição tornará as nuvens negras se for necessário e nossos registros públicos, com informações valiosas, estarão disponíveis aos seus seguidores.

 

Ué, Metatron não era onisciente? – Um anjo engraçadinho questionou cochichando nos ouvidos de outro anjo. Risadas suprimidas sobrevieram. Era a típica necessidade dos religiosos de ser e parecer bom sem, no entanto, refletir e medir as consequências de seus atos.

 

Com os olhos marejados e vermelhos, quase que beijando o chão e com o braço carente de cartilagem estendido em direção aos ouvintes, Bórgia disse que amava e temia Deus. Esclareceu, emocionado, que dedicou toda a sua vida ao Senhor.

 

– Eu te amo e te venero. Minha vida é sua. – Balbuciou o velho, em meio a uma poça de saliva e lágrimas. “Amar um desconhecido… essa gente tem problema”, pensou algum celestial do recinto.

 

religiao

 

Depois de toda essa verborragia insana, da submissão medieval, da demonstração de respeito e de amor incondicionais, Metatron, vexado e perplexo, disse:

 

Parabéns humano, tu és a primeira criatura terráquea a colocar os pés no meu palácio. Espero que essa contaminação do belo e do puro se justifique, pois, do contrário, será expulso imediatamente por ter sido covarde e auxiliado o inimigo na hora que eu, seu Deus todo poderoso, mais precisei de você. – Fez uma pausa e sorriu quase que imperceptivelmente com malícia. Adorava ser irônico. Achava patética aquela demonstração de devoção.

 

Os olhos do religioso estavam brilhando e a essa altura já fitavam, esperançosos e diretamente, o seu Deus. Não era exatamente o que esperava, pois Metatron parecia um anjo marombado, feito de matéria bariônica, mas ele, o Papa, estava na casa de Deus, o único ser vivo que esteve lá e essa proeza começou a fazer sentido dentro de si. Nem se deu ao trabalho de se perguntar o que havia ocorrido com todos os outros crentes da Igreja que já haviam morrido, pois, em tese, já deveriam estar ali também. Estava tão tomado pela emoção que nem raciocinava. Estar diante de Deus era uma sensação única e ele era o único ser vivo a senti-la. Sua devoção ao criador havia dado certo. Finalmente ele estava no Paraíso, local do qual acreditava que nunca mais sairia. Com efeito, apesar de ter puxado o tapete de muita gente para chegar onde chegou, potencializar o genocídio da Igreja, de promover festas luxuriosas com o dinheiro dos dízimos e de se entregar aos prazeres da carne, acreditava que estava perdoado, pois, para subir aos céus, bastava acreditar no Homem Invisível. “Ele”, por algum motivo, sempre perdoava se, e somente se, as pessoas acreditassem nele. Segundo a Igreja, não era determinante para comprar a passagem para os céus ser um bom cidadão, pois sempre havia o perdão, bastando acreditar naquilo que era imposto goela abaixo pelos religiosos. Sim, o deus da Igreja era egocêntrico e seus seguidores bajuladores, qual o problema? Se pecasse, bastava se confessar com o padre. Sempre haveria um ali para passar a mão na cabeça do pecador, o que, evidentemente, estimulava-o, ainda que inconscientemente, a praticar novos ou os mesmos pecados, a raiz da corrupção. De fato, a simples necessidade de acreditar para ser perdoado e de sempre existir um religioso disponível para ouvir e perdoar era um fator de corrupção e hipocrisia.

 

Volte para a Terra com Daniel, invoque os humanos para nossa causa e acabe com aqueles que se aliarem à causa de Lúcifer. Não podemos deixar que os demônios matem animais e seres humanos. Precisamos deixá-los sem provisões de alimentos. Meus generais entregarão armas especiais para seus exércitos que farão com que as almas de suas vítimas sejam enviadas diretamente para cá, e não para o purgatório, como se vocês fossem nossos anjos da morte. Mostre que você é temente a Deus e cumpra sua missão.

 

Muitos duvidavam da existência de Deus. O próprio Papa já havia duvidado inúmeras vezes. Por anos foi mortificado pela necessidade de ignorar argumentos racionais, e mesmo os mais simples eram irrespondíveis, e pela exigência velada de muitos que o rodeavam de alguma prova da existência do Homem Invisível, porque se não houvesse prova, o que impediria as pessoas de crerem em outros deuses. Para os menos perspicazes, Bórgia pedia que provassem a não existência de Deus e para os mais perspicazes dizia que não era possível provar a existência ou a não existência, devendo, portanto, ficar por isso mesmo e cada um na sua, dando a entender que acreditar ou não era uma questão de escolha, e não de evidências. O Pontífice, inclusive, teve que brigar com grupos de feministas que, sabe-se lá porquê, diziam que Deus era uma mulher ou era assexuado. Pouco importava se existia ou não, o que importava era seu sexo ou a inexistência do gênero. Essas poucas feministas queriam corrigir inúmeras agressões da Igreja ao corpo feminino que ocorreram ao longo da história.

 

Bórgia vivia uma sina ridícula de dar murros em pontas de faca. Dizia-se entre os céticos que a fé impunha inúmeras provações, até a maior delas, que era acreditar em algo sem sentido, ainda que por mero condicionamento social. Era importante que Bórgia fosse teimoso para manter a Igreja, isso porque Deus não era autoevidente, motivo pelo qual, logicamente, deveria ser ensinado e, se precisava ser ensinado, não podia ser pessoal. Os religiosos sabiam que as pessoas simplesmente não tinham contato com ele, Deus, e nem o sentiam, a não ser que, em tenra idade, fossem condicionadas e lobotomizadas pela Igreja ou por imposições sociais oriundas de um passado alheio ao conhecimento e ao saber científico. Se não se manifestava, precisando ser ensinado desde a mais tenra idade, era porque não passava de uma mentira; uma lobotomia institucionalizada.

 

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A matança que Bórgia e seus antecedentes promoveram contra os pagãos e contra aqueles que não acreditavam na existência de um Deus, nos moldes da Igreja, não era capaz de elidir a dúvida que consumia suas entranhas, na verdade sempre foi um pretexto para se manter no comando, mas, agora, seu Deus estava ali. Ele venceu! Ele tinha razão, afinal! Tudo bem que seu Deus era material, temporal e estava lhe pedindo ajuda. Era estranho, mas, pelo menos, ele existia e era isso o que importava. Tinha a prova de que Deus existia, pois estava diante de uma figura que emanava um poder sem igual e isso era o que importava.

 

– Conte com a Igreja, Criador!

 

O Papa estava deslumbrado com tudo e fez reverência a Deus. Quando levantou a cabeça, não viu Metatron e seu séquito. Todos haviam mergulhado prédio abaixo, com exceção do filho do ditador.

 

Assim, com a aceitação tácita de Metatron, a Igreja se aliou a um regime totalitário e intolerante.

 

 

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CONTINUA…

 

Leiam A Nova Teogonia Livro I e Livro II, de minha autoria.

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Aviso: Lúcifer e a conspiração dos arcanjos

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Na segunda passada, mandei fazer cem cópias do livro =) Acho que ficam prontas em janeiro.

Cerca de vinte exemplares já tem destino certo.

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Lúcifer e a conspiração dos arcanjos – Parte 14

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Vide parte 13

 

DE VOLTA À MANSÃO DE KLEPOTH

 

Passados alguns minutos, Klepoth se recuperou do estresse que a reflexão sobre sua vida causou. Viu que na sala se encontravam Samuel e Gabriel. O primeiro preocupado e o segundo enojado, pois ouviu parte do relato do demônio. Samuel a tomou pelo braço e a abraçou. Tentou acalmá-la. Gabriel, impaciente, balbuciava algumas palavras incompreensíveis, quando de repente um barulho estrondoso se fez ouvir. A porta do cômodo em que estavam Klepoth e seus convidados havia cedido e inúmeros homens furiosos, armados de vários instrumentos de cozinha e de cultivo de plantas, entraram gritando e derrubando tudo. O necromante lembrou do aviso dado por aqueles homens. Aproveitaram que Klepoth e os convidados estavam encurralados e distraídos naquele cômodo. Os arcanjos rapidamente tomaram a frente de Klepoth, Esmeralda e Lúcifer. Ambos eram muito ágeis. Desembainharam “Uma mensagem para ti” e “Força interior” rapidamente. Estavam prontos para qualquer ataque. A atitude e a agilidade dos arcanjos intimidaram os homens que vinham na frente, mas eram muito os agressores. Os de trás empurravam os da frente de forma que era impossível a estes fugirem de um embate com os arcanjos. Samuel gritou para que parassem e que a circunstância poderia ser resolvida pelo diálogo, todavia a massa de homens insanos se avolumava. O choque era inevitável.

 

Não os mate, Gabriel! – Gritou Samuel enquanto derrubava dois oponentes se valendo da bainha e da empunhadura da “Força interior”, tomando cuidado para não matá-los.

 

O necromante invocou sua esfera de energia e estava pronto para atacar qualquer homem que conseguisse transpor a linha feita pelos arcanjos que combatiam ferozmente os homens. Todavia, Lúcifer percebeu que Klepoth recitava versos estranhos. Logo percebeu que a virtude estava invocando algum tipo de feitiçaria. Repentinamente, atravessando a parede lateral surgiu um grande mamute de olhos verdes. Pela pequena janela, na parede do lado oposto da entrada triunfal do mamute, uma pantera negra com olhos verdes surgiu, estilhaçando os vidros. Ambos animais eram duas das inúmeras feras percebidas pelos arcanjos na noite anterior. Os poucos homens que restaram do confronto com os arcanjos, espantados, voltaram pela porta de onde tinham entrado. Houve um grande pisoteamento na fuga. Todavia, os insurgentes foram surpreendidos por mais dois animais ferozes: um cavalo monstruoso, negro, cor de ébano e de olhos verdes brilhantes, e um urso gigantesco também de olhos verdes.

 

necromancer

 

Samuel, desesperado, gritou:

 

Klepoth, por favor, não os mate. Pare!

 

A virtude hesitou. Odiava aqueles seus escravos, pois eles eram assassinos, porquanto não faziam nada direito e porque, para sua vergonha, tinham colocado as vidas de suas únicas visitas agradáveis nos últimos séculos em risco. Mas, por outro lado, olhou diretamente para a face resoluta de Samuel e sentiu toda sua força de espírito. Resolveu recuar. Recitou um breve encantamento e as feras recuaram imediatamente, deixando que os poucos homens que sobraram em pé fugissem.

 

Saiam da minha casa, marginais antes que eu mude de ideia e dê cabo de suas vidas miseráveis. E levem seus amigos também. – Referia-se aos homens caídos e desmaiados ou em razão do embate com os arcanjos ou em função do ataque repentino do mamute que jogou pedras e pó para todos os lados na sua entrada arrebatadora.

 

mamute

 

O arcanjo Samuel, que estava incomodado pelo fato de ser acusado de não se importar com o destino dos seres humanos, agradeceu a bondade e ajudou Klepoth a se levantar. Havia decidido respeitar a vida humana também e considerá-la tão relevante como sua própria vida, pois sua moral foi retirada de inúmeras experiências e ensinamentos ao longo da vida, inclusive daquela crítica, de que não se importava com os humanos, que tanto o incomodou.

 

A dona da fazenda sorriu e fitou sincera os olhos do celestial, cada vez mais o admirava. Tudo que deixou de amar nos últimos séculos, estava amando naqueles momentos. Esmeralda teve esperança, pois percebeu que sua mãe talvez tivesse solução. Gabriel, por seu turno, fungou insatisfeito. O arcanjo amargurado sentia que a aproximação entre Samuel e Klepoth seria mais um sério problema para a causa pela qual lutava.

 

Desculpe-me, Samuel, eu não queria… eu não queria matá-los, mas fiquei furiosa e… – Disse confusa.

 

Já passou querida, eles se foram. – Abraçou-a. Klepoth fez o mesmo. Não queria mais soltar o arcanjo e o apertou entre seus braços de forma firme. Ficaram ali por algum tempo.

 

NO INFERNO (II)

 

Nas masmorras do Inferno, Asmodeus entrou na cela em que estava circunscrita uma figura celestial moribunda, banhada em seu próprio sangue azul, seco e enegrecido, fedendo à morte, com marcas profundas de dentes e lanças em brasa. Hematomas cobriam todo o corpo. Estava sem uma asa e com a outra quebrada, praticamente sem penas. Aquela criatura linchada, espancada e agonizante, acorrentada e pendurada pelos pulsos, com roupas rasgadas, sujas de barro, enxofre e sangue, era um arcanjo, era Uriel. Ele ainda estava vivo, o que era admirável.

 

Asmodeus mal entrou na masmorra e chutou com força o peito do arcanjo. O estouro oco da bicuda do demônio em Uriel produziu um calafrio em Lilith, que entrou logo atrás. Ela estava com uma saia social rosa de algodão e um blazer de mesma cor. Também tinha um chapéu com várias rosas, brancas e vermelhas. Calçava uma sandália de salto alto. Era uma forma elegante de ficar mais alta, segundo dizia. Procurou usar tons claros, pois a masmorra era muito escura e cafona.

 

O chute do demônio quebrou uma costela do guerreiro. Uriel, apesar do forte impacto, não gritou ou reagiu. Não tinha forças para fazer nada. Ajoelhado e com os pulsos presos a correntes, sem olhar para frente, porque fraco, cuspiu sangue.

 

Onde estão?! Diga! Diga! Maldito Celestial.

 

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Asmodeus puxou os cabelos de Uriel e o fez olhar diretamente para seu rosto. Uriel estava deformado. O olho direito havia sumido em meio ao inchaço. O esquerdo estava roxo e fechado, provavelmente perfurado. A situação dos olhos do arcanjo aborreceu Lilith, pois ela não teria como mostrar o seu novo figurino como gostava de fazer. O nariz e a boca estavam sujos de sangue seco e enegrecido. Havia várias marcas de afiados dentes pelo rosto e pelo pescoço. Seus ferimentos estavam infeccionados.

 

Quem é a raça pura agora, filho da puta? – Chacoalhou a cabeça do prisioneiro. – Você é um fraco que se escondeu atrás do Paraíso e de Metatron. Vou matar você e toda a sua raça. Onde estão escondidos os outros arcanjos? Aqueles covardes que te abandonaram. Onde eles estão? Responda maldito!!! – Asmodeus, que era pura testosterona, puxou sua espada e, não fosse a intervenção de Lilith, teria fincado sua arma no peito de Uriel para dar cabo daquela vida.

 

Asmodeus, filho, não o mate ainda. Precisamos de algumas informações. Lembra-se? Além disso, você poderá torturá-lo mais um pouco em breve. Poderá mostrar para ele a derrocada de todos os seus amigos.

 

Asmodeus guardou a espada, “Degoladora tresloucada”, e perguntou impaciente, ainda segurando a vasta cabeleira suja do Arcanjo:

 

Onde estão os traidores?

 

O arcanjo, no limite de suas forças, balbuciou apenas, quase inaudível, algumas palavras:

 

Um por todos, todos por um.

 

um-por-todos-todos-por-um

 

Asmodeus, enfurecido, jogou Uriel contra a parede e saiu enlouquecido.

 

Malditos demônios. Deixaram-me um moribundo que tresvaria para interrogar. Quando eu assumir o poder, formarei verdadeiros guerreiros.

 

Lilith deixou o recinto logo atrás do filho. Uriel, após ser atirado contra a parede, apagou. A pele dos pulsos ficou ainda mais comprometida. A do pulso esquerdo rasgou. Estaria morto?

 

Algum tempo depois, Lilith, já vestida com um longo vestido roxo, que valorizava suas curvas, sempre muito bem informada, ficou sabendo que provavelmente havia um arcanjo no Inferno fazendo perguntas, espreitando, disfarçado entre os demônios e os rebanhos de almas, e cometendo alguns assassinatos. A informação chegou como mero rumor, mas a bela sabia que era verdade. Conhecia o senso de lealdade de alguns militares. “Provavelmente está buscando Uriel”, pensou a beldade demoníaca. “Burro”. Gargalhou. Sua missão agora seria mais fácil. Levou a notícia a seu filho, Asmodeus, que em um impulso de raiva, pensou em matar o arcanjo, dando o alerta geral. Enviaria todos do Inferno no encalço do invasor. O arcanjo desconhecido não teria como fugir. Com efeito, Moloch estava fechando todas as entradas e saídas do inferno e construía um competente sistema de inteligência e espionagem. Àquela altura, o Inferno havia deixado de ser uma terra estéril para ser um local que começava a pulsar forte. Todavia, Lilith teve uma ideia. Esperou passar as explosões de violência do filho, as juras de morte e os arroubos de ódio. Quando Asmodeus parou de vociferar blasfêmias, ela disse em tom de voz calmo e elegante:

 

Filho, sugiro que deixemos o invasor resgatar Uriel. Ele nos levará direto a todos os outros arcanjos e suas tropas. Facilitará nosso serviço. – Sentou e cruzou as pernas. Sabia que torturar Uriel não daria certo. Asmodeus o mataria, pois não teria a paciência necessária para realizar horas de torturas, vencendo a vítima pelo cansaço. Seu filho também não aceitaria que outro demônio, um profissional da área, torturasse o prisioneiro para obter respostas. Para Asmodeus, resolver a questão dos arcanjos era incumbência dele. Tinha a mente curta, pouco flexível.

 

Rafael se esgueirava pelo Inferno cada vez mais movimentado e pulsante. Almas e mais almas chegavam a todo o momento da Terra e dos depósitos de Mammon àquele local para abastecer a crescente horda demoníaca. Eram devoradas sem dó nem piedade pelo exército de Lúcifer. A visão era assustadora, pois constituía um verdadeiro genocídio, porém o arcanjo invasor estava resoluto e tinha convicção na sua decisão. Iria até o fim. Salvaria o amigo. Não precisava de ninguém para isso. Embora determinado, estava apreensivo e irritado, não só pelo ar pesado, que fedia enxofre, mas porque todas as vítimas da “Panaceia Universal”, demônios e almas perdidas, não sabiam dizer onde estava Uriel. Mas todas eram uníssonas em dizer, antes de morrerem, que os prisioneiros eram levados às masmorras do palácio de Lúcifer.

 

Os vulcões do horizonte estavam ativos, a terra tremia e era quente. Corpos em chamas e almas atormentadas eram cada vez mais frequentes. Rafael via que o céu do Inferno se enegrecia e inúmeros contingentes de demônios e criaturas bizarras chegavam a cada instante. Lúcifer não estava para brincadeira. A cada minuto que passava, ficava mais difícil passar incólume entre os grupos de demônios exaltados que blasfemavam contra Metatron e contra o Paraíso. Queriam sua vingança, queriam romper a maldição, queriam voltar a ser belos.  Rafael nunca viu tamanha concentração de ódio. O que uma pena injusta não fazia? Viu o invasor um imenso exército, de dez legiões, marchar rumo ao portal pelo qual ele e seus amigos fugiram. Os desgraçados já haviam removido todas as ruínas da Santa Sé… e ele que teve tanta dificuldade para se esgueirar sobre os escombros daquela construção humana.

 

Pensar não era sua característica mais forte. Dos arcanjos, era o mais imaturo e rebelde. Sabia que aqueles demônios na verdade eram anjos caídos, cuja beleza e honra lhes foram retiradas por terem adotado uma determinada posição política. Uma posição que assim como a dele e de seus companheiros contrariava Metatron. Mas aquilo não era importante naquele momento. Decerto, se descoberto, seria morto ou torturado, viraria prêmio de guerra ou viraria mais um demônio. Logo, a “Panaceia Universal” não teria piedade daquelas criaturas, assim como não teve com os demônios desgarrados que o interceptara. Ignoraria as palavras de Ezequiel. Com efeito, Ezequiel sempre dizia, em suas inúmeras conversas com o impulsivo Rafael, que os demônios deveriam ser perdoados, pois não eram culpados pelo difícil destino que trilhavam. Mas como não ter ódio daqueles que os traíram e aprisionaram seu companheiro horas atrás? Perdoar? Perdão era um conceito tão vago… Por que perdoar o imperdoável? Perdoar para Rafael era indiferença e conivência. Ele não perdoava, embora Ezequiel dissesse que perdão poderia ser meramente desculpa, tolerância ou libertação. Não! Rafael não desculparia os demônios, não toleraria seus crimes e não se libertaria da raiva até acabar com todos eles, pois nada justificava o que eles faziam aos celestiais – ataques suicidas, sequestros, mutilações e emboscadas. Precisava chegar ao palácio de Lúcifer.

 

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À medida que chegava perto do castelo do soberano, das sombras e sob capuzes e mantas escuras, Rafael escutava boatos cada vez mais frequentes de que Uriel estava preso e que estava sendo torturado nas masmorras do Palácio. Nas últimas horas, ouviu inúmeros capitães e líderes de pequenos bandos de demônio propagarem a notícia, celebrando as terríveis torturas a que o arcanjo era submetido. “A “Salvação Final” não perdoaria ninguém”, pensou Rafael. Não podia voar, pois seria facilmente capturado e não poderia se expor muito, pois desconfiava de que já estava sendo procurado, tendo em vista que já havia matado alguns demônios. E essa limitação era irritante. Já estava há mais de 24 horas no lugar, sozinho, alimentando-se de restos de almas, tentando percorrer aquela longa distância do portal até o palácio arruinado. Voar era tão mais fácil. Um por todos, todos por um.

 

NO PARAÍSO (II)

 

Senhor, também tenho uma informação urgente de nosso serviço de inteligência. Lúcifer saiu com um pequeno contingente para o Lago de Fogo. Ele pretende banhar a “666” naquela lava para torná-la mais poderosa que a “O poder das sete estrelas”. Podemos interceptá-lo e jogá-lo no Lago de Fogo antes mesmo da guerra explodir.

 

E o anjo mensageiro, esbaforido, retirou a cabeça de Aniel de uma caixa, o que deixou Metatron irritado. Aniel era a potestade de que mais gostava.

 

MAIS UMA VEZ NA MANSÃO DE KLEPOTH E A ESCADA DE JACÓ

 

Mãe, estes animais de olhos verdes, o que são?

 

São criações minhas. – Tergiversou Klepoth um pouco envergonhada, isso porque Samuel não saía mais de seu lado.

 

Criações?!” pensou Esmeralda. “Tem coisa aí”.

 

Temos que deixar o local. – Alertou Gabriel impaciente. – Precisamos voltar para junto de Jofiel e Ezequiel. Tenho um mau pressentimento.

 

Você tem razão. – Concordou Samuel. – Vamos embora.

 

Samuel, no entanto, notou que um exército subia a montanha e se aproximava rapidamente da fazenda de Klepoth. Gabriel, então, saiu da casa, subiu aos céus e viu que um poderoso exército de humanos, acompanhados de anjos, subia pela colina. Os soldados eram liderados por uma mulher, Elisa Bárthory, esposa do regente de Amelot. Ela gritava ensandecida, esquecendo-se de que era uma mulher em meio a centenas de homens religiosos:

 

– Matemos Klepoth! Deus está conosco! Matemos todos os que não estão do  lado Deus. Dizimemos os infiéis, assim como fizemos no Massacre de São Bartolomeu! Iremos para o Paraíso com Deus. – Com efeito, a mensagem de Metraton aos seres humanos já estava sendo espalhada pelos principados. Era a mesma instrução que fora dada ao Pontífice. Todos os governantes, regentes, reis, arcebispos e senhores feudais estavam sendo orientados a matarem todos aqueles que não acolhessem a causa divina. Armas celestiais e lanças do destino estavam sendo distribuídas para os aliados, de forma que a matança por meio delas fizesse com que as almas dos mortos fossem diretamente para o Paraíso.

 

Elisa, quando recebeu sua adaga celestial, “A Sanguinária”, apaixonou-se por aquele artefato. Uma arma sem igual, forjada pelo próprio Deus, embora o principado que a acompanhava, Nanael, tivesse dito que a lâmina era feita de nanotubos e que fora banhada em uma substância quântica. Munida daquela arma, Elisa nada temia, pois tinha certeza de que iria para o Céu caso morresse. Gritava para seus homens:

 

– Nada devemos temer, pois Deus está conosco. Veja os anjos do Altíssimo. Se Deus é por nós, quem será contra nós? – E completou: – Deus vos dará duas virgens por dia por toda a eternidade. Abusai delas. – Berrava Elisa fanaticamente para as pobres criaturas dependentes dos respectivos pênis. –  Deem a vida a Deus e subamos a Escada de Jacó. Façamos nossa jornada ascendente para Deus.

 

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Nanael olhava embasbacado para a cena se perguntando o que estava fazendo ali. Ela dizia o nome de Deus em vão tantas vezes que lembrava o sermão de um padre qualquer. “Será que ela não sabia usar pronomes?”, pensou o principado. “Se soubesse que viraria comida no Paraíso ou no Inferno certamente não teria motivação alguma para cometer as atrocidades que estava prestes a cometer”, pensou. “É tão bom pensar”, concluiu.

 

o que é religião?

 

O principado sentia pena dos seres humanos que seguiam a Igreja, pois eles menoscabavam outras crenças, como, por exemplo, aquela que acreditava na reencarnação, denominando-as, pejorativamente, como seitas, como se a própria Igreja não fosse uma. Era comum que fiéis da Igreja rissem das ideias do espiritismo ou da reencarnação, acusando-as de bobas, falsas, improváveis e infantis, mas, se pensassem bem, e considerando que a maioria dos crentes acreditavam na ideia de que corpo e alma podiam ser dissociados, o espiritismo e a reencarnação eram conceitos mais prováveis e verossímeis do que a existência de um Deus atemporal, sem nascimento, amadurecimento e envelhecimento, mas que mesmo assim já havia criado pelo menos um universo complexo.

 

A única coerência que Nanael conseguia enxergar nos humanos naquele momento era a vontade de morrerem por Deus e a felicidade que isso causava, visto que, por algum motivo, viveriam eternamente do lado do Homem Invisível. Nanael ficou surpreso, pois finalmente via alguma coerência naquele comportamento primitivo, isso porque os seres humanos, em regra, ficavam tristes quando um ente querido morria, mesmo acreditando que ele iria para o Paraíso. Apontada a contradição, justificavam a tristeza com a palavra saudade. Por que, então, já que estavam proibidos de cometer suicídio, sob pena de serem mandados para o Inferno, não encaravam a morte de frente, para aumentar a possibilidade de irem logo para o Céu? Por que não enfrentavam bandidos e injustiças de peito aberto ou os demônios invasores da Santa Sé, mesmo acreditando que Deus estava com eles? Por que só ficavam orando, esperando a morte chegar, de preferência o mais tarde possível e sem muitos traumas, dor e sofrimento, dispensando o destemor?

 

Enquanto Nanael pensava, o avanço do exército humano se acelerava e ficava cada vez mais fanático. Os homens que haviam fugido dos domínios de Klepoth foram mortos imediatamente pelo exército de Elisa, pois o fanatismo era cego e a sede de sangue grande. E de todo modo, os fugitivos eram imprestáveis naquele momento como integrantes de um pelotão. Eles seriam mais úteis como comida de anjo.

 

Os principados, seres de terceira hierarquia, aconselhavam os governantes, buscando manipular os humanos e suas guerras, de forma a abastecer regularmente o Paraíso de almas. Com o paulatino aumento da população humana, que se proliferava como ratos, os principados ganhavam importância, pois tinham que controlar as guerras humanas, visto que estas geravam um excesso repentino de almas espalhadas pelo Céu e pela Terra. Buscavam também, por meio de preceitos religiosos, impor a monogamia aos seres humanos, de forma a inibir a proliferação descontrolada dos terráqueos. Sabiam que a religião justificava até a violência e discriminação. Não optaram por sugerir a adoção de um estado laico e baseado na educação e trabalho, bem como no saneamento básico, pois isso certamente faria com que os seres humanos deixassem de se matar por questões irracionais, o que dificultaria o controle sobre eles. Os principados sabiam que a religião tinha o poder de fazer com que cada indivíduo tivesse a crença de que era o dono da verdade e que seu deus e seus costumes valiam mais do que a de outros povos, o que garantiria guerras regulares. Vivendo mais e se reproduzindo menos, os seres humanos deixariam, no futuro não muito distante, de atender a crescente demanda do Paraíso e, talvez, do Inferno. Mantendo os humanos na ignorância e misticismo, impondo regras morais e promovendo guerras quando bem entendesse, o Paraíso regularia o fornecimento de almas como melhor lhe aprouvesse. A questão do aborto era uma questão que tangenciava essa manipulação. A vida só era defendida de forma intransigente quando uterina, mas quando o ser humano já era maior, não havia muitos problemas morais para matá-lo ou para mandá-lo aos campos de batalha, isso porque era importante, por razões nutricionais, que a alma se desenvolvesse. O argumento principal utilizado pelos principados e conservadores era que a vida não podia ser suprimida, pois poderia dar bons frutos, como um padre ou um compositor prodígio, e que a mulher não podia ter qualquer controle sobre aquilo que gerava dentro dela – e que imporia obrigações futuras somente a ela. É claro que a Igreja, apesar de ser contra o aborto, não faria nada para ajudar no planejamento familiar, é claro que não daria apoio financeiro à mulher e é claro, de outro lado, e de forma contraditória, que não estimularia que as mulheres tivessem filhos todos os anos, alcançando cada uma o número de dez a vinte filhos, o que certamente aumentaria inúmeras vezes a chance de serem gerados bons frutos (novos padres e compositores). Em outras palavras, a Igreja era tão contraditória, conservadora e irracional, negando a própria essência e razão, por influência dos principados e do conservadorismo intrínseco de seus dirigentes, que apenas atendia as necessidades do Paraíso e a sua própria moral deturpada.

 

Quando havia excesso, o excedente de almas era remetido diretamente para o Inferno, sem qualquer tipo de triagem no purgatório. Como a Igreja e outros impérios expansionistas moviam guerras pelo mundo na época e matavam sem dó nem piedade, milhares de almas foram remetidas diretamente para o Inferno, onde ficariam confinadas, pois se se mantivessem na Terra, sem passar pelo Purgatório, poderiam acabar no Céu, por meio de contrabando, e alimentos de segunda ou contaminados, sem qualquer controle de qualidade, perambulando aos quatro ventos, era algo que Metatron não aprovava.

 

O fato de muitas almas terem sido encaminhadas para o Inferno, em que pese sua vastidão, colaborou com os planos dos arcanjos e com os de Lúcifer, que teria comida em abundância para seus exércitos. Com espaço e alimentação farta, os demônios de Lúcifer, graças ao gênio criativo de Abigor, aglutinaram-se rapidamente.

 

Voltando à situação da fazenda, os anjos que apoiavam Elisa rapidamente atacaram a residência.

 

– Maldição! – Balbuciou Samuel. – Gabriel, leve Lúcifer, Esmeralda e Klepoth contigo. Enfrentarei estes anjos e depois eu os seguirei.

 

– Ficarei com você. – Afirmou Klepoth e logo suas crias apareceram para apoiá-la. Samuel a olhou agradecido, mas tentou argumentar. Não queria que a virtude se machucasse.

 

– Fuja! Precisamos de Vossa Senhoria! Precisamos de teu conhecimento! – Gritou se preparando para suportar a carga angelical agressora.

 

– Não! Transmiti todos os meus conhecimentos para aqueles que me procuraram. Não me importa o que fazem com o conhecimento, pois transmiti com lealdade, integridade e honestidade os ensinamentos celestiais, humanos e científicos a mim confiados para fazer das criaturas profissionais e cidadãos conscientes, responsáveis e inteligentes. Minha função eu já cumpri. Mas ainda preciso ter alguém para amar e finalmente te encontrei, agora farei tudo para ficar ao teu lado.

 

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Aquelas palavras e o olhar firme daquela criatura calou Samuel. O amor verdadeiro era aquele incondicional, irresponsável, quente e irrefletido entre criaturas viventes. Ela, por mais que não parecesse, era uma virtude e sua palavra deveria ser considerada. Deveria ser respeitada e entronizada.

 

– Vão! – Determinou Samuel, já resignado e feliz por ter alguém que estava disposta a morrer a seu lado, um amor verdadeiro e concreto, fruto de interações físicas e dialógicas, não de epifanias, condicionamentos e revelações. E logo raios angelicais alcançaram o casal defensor.

 

Gabriel partiu para o acampamento dos arcanjos sem olhar para trás. Sabia que aquilo tudo havia sido uma péssima ideia, apesar das declarações de amor. Klepoth não serviria para nada! Atender a vontade da filha da virtude foi uma decisão estúpida de Samuel. Agora era apenas ele, o necromante, Jofiel, Ezequiel e um pequeno contingente de anjos leais esperando por sinais.

 

E assim, Samuel, Klepoth e os filhos da virtude ficaram para dar cabo daqueles seres humanos e daquele contingente de anjos ou, ao menos, para cobrir a fuga dos aliados. Além do objetivo pessoal de acabar com Klepoth, Elisa Bárthory foi instruída a eliminá-la imediatamente, pois ela possuía muito conhecimento sobre como construir armas poderosas capazes de destruir criaturas do porte de Metatron e Lúcifer. Será que sobreviveriam?

 

CONTINUA….

 

 

Leiam A Nova Teogonia Livro I e Livro II, de minha autoria.

A Nova Teogonia tem na Livraria Cultura também!


Meus deuses preferidos em SMITE

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Depois de pouco mais de um mês jogando SMITE, de muito penar para controlar os personagens e conhecer as nuances do jogo, e com o vício arrefecendo, posso tecer alguns comentários sobre o game. Joguem (no xbox one ou no PS4 é mais legal do que no PC, pois na TV a tela e o som são maiores, o que torna as partidas mais emocionantes)! SMITE é bacana, embora seja um pouco irritante quando as batalhas não são ganhas, o que é frequente, rs.

Eu jogo relativamente bem com a Nu wa e com o Poseidon, sendo a Nu wa, até o momento, minha deusa favorita.

Eis minhas estatísticas.

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Gosto da Nox, do Chaac, do Anúbis, da Amaterasu, do He bo e do Baco também, mas não jogo tão bem com eles.

nox-smite chaac-smiteanubis-smite amaterasu-smite he-bo-smite bacchus-smite

Gosto de jogar com a Freya e com a Hel também, embora eu ainda não tenha jogado um número suficientes de partidas com elas para dizer se sou bom. É preciso jogar pelo menos umas 20 ou 30 vezes com cada personagem para poder se ter uma ideia de como vc poder influenciar uma partida, tendo em vista, por exemplo, que são cinco contra cinco no modo arena e três contra três no modo justa. Cinco ou seis partidas não demonstram muita coisa, senão nada. É necessário uma amostragem alta.

freya-smite hel smite

 

De toda forma, ainda há quase cinquenta deuses com quem não joguei. Prevejo um ano ainda para jogar bastante com todos eles, embora tenha alguns que eu já saiba, de antemão, que não irei gostar. Só irei jogar algumas vezes com eles, para não ser preconceituoso e nem omisso.

 

Tenho clara preferência pela classe dos magos, pois são mais poderosos no final do jogo e porque dispersam muito poder pelo cenário, embora sejam fracos fisicamente – morrem muito fácil quando devidamente atacados. Essa preferência talvez decorra do fato de que sou adepto do jogo coletivo e de que eu não tenha mira e agilidade tão acuradas para jogar com outras classes de deuses, que exigem maior precisão e velocidade.

 

E para quem joga, vai entender o que direi a seguir: sou jogador de arena (uma das espécies de cenário) mesmo e com muito orgulho, até porque não tenho clã e porque quero jogar videogame sem compromisso nos próximos anos. Os outros cenários exigem entrosamento e um grupo fixo para jogar, o que pode ser pior do que o compromisso com a sociedade, trabalho e casamento do dia a dia. É certo que na arena nos beneficiamos também de entrosamento, mas nela há menos dependência de estratégia.

 

Enfim é isso.


Força Chape!

Aviso: Lúcifer e a conspiração dos arcanjos

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A capa já está pronta! Vou postá-la aqui, antes do final desta semana.

 

Até sexta-feira, publico mais um trecho. Já está acabando!

 

No momento, estou fazendo a revisão do texto diagramado. Pretendo entregá-la antes do final deste ano para o livro físico ficar pronto no final de janeiro.

 

Não fiz ainda a revisão, pois ainda continuo viciado em SMITE, mas agora um pouco menos. Para falar a verdade, estou resignado com minha falta de habilidade para jogar acima da média dos jogadores e com o tempo que o jogo consome da gente. De toda forma, faltam apenas oito deuses para eu jogar pelo menos uma vez com todos e já sei com os quais jogo bem e com os quais, apesar da simpatia, nem tanto.

 

 

Mudando de assunto, preciso escrever um texto de natal ainda está semana e fazer alguma enquete. Por conta do ano difícil, de várias perdas, pouco escrevi aqui. Enfim, a vida continua. Vou tentar aproveitá-la ao máximo, pois talvez eu não esteja aqui amanhã.

 

Boa noite!


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