– Morra! – E o necromante lançou sua esfera de energia negativa esverdeada contra o arcanjo Miguel. O ambiente se iluminou. O clérigo, no chão, ainda sofrendo os efeitos da investida do herói, e o necromante fecharam os olhos e se protegeram da grande explosão de luz que se seguiu. Quando conseguiram olhar diretamente para a passagem onde estava o arcanjo, notaram que ele ainda permanecia lá, como se nada houvesse acontecido.
– Noto que teus poderes aumentaram. – Observou a criatura.
Incrédulo, Lúcifer se preparou para atacar novamente, porém sentiu um forte calor em seu estômago e uma insuperável dor em suas costas. Havia sido atingido por uma fonte de luz no abdômen e arremessado contra a parede violentamente. Foi tudo muito rápido. Tontura.
– Tenho absoluta certeza de que tu sucumbirás em poucos dias. Não poderás cumprir tua singela missão.
“Missão?”, perguntou para si mesmo o clérigo.
– Tu, desde que ficaste sob a influência do mal, aumentaste muito o teu poder, todavia não é páreo para um arcanjo como eu, muito menos para uma potestade ou para um dos demônios de Lúcifer. Tu és um fraco e morrerás em breve a menos que venha a conhecer o perdão.
– Perdoar a quem?! – Bradou o herói caído com alguma dificuldade. – Vocês tentaram me matar e agora querem me usar? – O necromante se levantou sofregamente. – Vocês acabaram com minha vida e com a vida da única pessoa que eu amei. Eu juro que irei matá-los.
O necromante preparou novamente um ataque.
– Onde está o corpo dela?! – Em desespero, Lúcifer gritou ao mesmo tempo que se lançava para um novo ataque. – Foi você, não foi?!
– Lúcifer fez um belo trabalho em ti. Ele te cegou. Em breve tua alma será dele. – Disse com um certo menoscabo.
Lúcifer se preparou para arremessar seu ataque no adversário, mas sentiu um forte impacto no seu pulso.
– Tu és um fraco, uma marionete patética do mal e que deseja vingança contra tudo e contra todos.
– Espere! – Interveio o clérigo. – Que missão é essa a que se referiu, minha santidade?
– Eu não sou uma santidade, não use vocativos mundanos para se dirigir a mim.
E Miguel dirigiu a palavra a Lúcifer:
– Necromante, tu serás o encarregado da destruição do livro maldito. – Proclamou o arcanjo apontando para o Grimório. – Leve-o até o Lago de Fogo, situado no Inferno, e o destrua nas lavas flamejantes.
Silêncio.
– Por que eu? – Questionou o necromante ressabiado, com dor nas costas, no abdômen e no pulso alvejado pelo arcanjo.
– O Grimório só pode ser manipulado por Lúcifer, demônios, serafins, querubins e por seres mortais que aprenderam a manipular a ciência negra. Qualquer outro ser que o toque será infecta… amaldiçoado. Poderá perecer! Uma morte grotesca e lamentável lhe será reservada, ou, pior, o infeliz sucumbirá ao poder de Lúcifer e passará a ser um servo do mal, mais um soldado demoníaco.
– Mas… e Esmeralda? – O necromante olhou para o arcanjo e depois para o santo caído na esperança de ter alguma resposta.
– Esmeralda? – Indagou Miguel com um ar de desdém. – Ela não importa. A guerra total e cruel está para ser deflagrada, talvez estejamos diante do Juízo Final ou do triunfo do mal. Não podemos nos dar ao luxo de deixar este livro existir e contribuir para o fortalecimento do adversário. Sentimentos humanos devem ser extirpados de tua mente. Para Vossa Senhoria, nada é mais importante do que a destruição deste livro. Não podemos deixar que inocentes o toquem e pereçam ou sucumbam ao poder maléfico de Lúcifer. Seu Deus precisa de ti.
– Mas… – Tentou insistir o necromante tentando entender tudo aquilo, enquanto os olhos do clérigo brilhavam. Deus, perdão, bem contra o mal, eram termos que todo religioso gostava de tratar. O arcanjo Miguel havia caído como uma luva para São Paulo, já que dava-lhe moral e punha mais em dúvida o ateísmo do necromante.
– Silêncio! – Bradou o arcanjo Miguel. – Tome o livro em mãos e parta para cumprir teu mister, humanoide. – Ordenou peremptório Miguel.
O necromante não sabia exatamente o que fazer. Odiava Miguel e queria matá-lo, mas o arcanjo era muito poderoso. Não havia como derrotá-lo. Odiava Lúcifer também, porque havia matado sua bela, mas o máximo que podia fazer contra ele era destruir aquele livro maldito, cujo perigo não sabia exatamente qual era. Deveria levá-lo ao Inferno? Como? Onde? Estava cansado de ser manipulado, mas queria, por outro lado, fazer alguma coisa contra seus manipuladores; queria, naquele momento em que via sua vida desabar, vingar-se de tudo e de todos. Além disso, na situação em que se encontrava, encurralado por um ser celestial poderosíssimo que poderia acabar com sua vida a qualquer momento e mandá-lo para o Inferno ou para o Purgatório, obedecer era a melhor forma de proceder. Talvez, se obtivesse sucesso, vingar-se-ia, ainda que de forma tênue e mitigada, do algoz de seu amor.
Assim, Lúcifer, o necromante, levantou-se com dificuldade e se dirigiu ao livro sob o olhar atento de Miguel e do clérigo. No fundo de sua alma, inconscientemente, aventava a possibilidade de salvar aquela que conquistou seu coração e sua lealdade.
Cansado, pegou o grande livro e o colocou fechado sob o braço direito e disse abatido:
– Estou pronto.
– Bem, tu tomaste a decisão correta, ainda que de forma recalcitrante.
– Qual é a maldição deste livro? – Perguntou com a voz fraca e preocupada o clérigo para Miguel.
O arcanjo Miguel apenas olhou com desprezo para São Paulo e nada disse. Voltou-se para Lúcifer:
– Este livro traz morte e destruição para tudo o que está à sua volta. Ele contaminará rios, plantações e animais, adoecerá os homens e os matará, outrossim trará a destruição certa para cidades e vilarejos. Demônios virão atrás do Grimório para arrebatá-lo e fazer uso dele para seus propósitos vis: a morte de inocentes e o aumento dos exércitos malignos. Por isso, o tempo é imprescindível. Siga o rio até sua fonte, nas montanhas geladas. Atravesse a cadeia montanhosa. Passe por Amelot. Parta para o deserto, atravesse-o até chegar às cadeias vulcânicas. Lá fica a maior entrada para o Inferno. Nele, procure o Lago de Fogo e jogue o Grimório sobre suas lavas.
– Eu vou com você. – Disse o clérigo confiante. Era sua chance de ajudar o Deus onipotente em que acreditava.
– Portador da ciência negra, tu não conseguirás sozinho. Para cumprir com êxito seu múnus, precisará da ajuda de um anjo da guarda. Apresento-lhe: Penélope, teu anjo da guarda.
De trás de Miguel saiu um anjinho feminino, com longos e encaracolados cabelos louros, olhos de jabuticaba, nariz arrebitado, olhos curiosos, um tanto desengonçada, com rostinho de adolescente sapeca. Disse ela espontaneamente:
– Oi, chuchu.
– Uma criança! – Exclamou o necromante.
– Eu sou mais velha que você. Tenho 547 anos. – Disse confiante e mostrando a língua.
– Este anjo é fundamental para o sucesso da empreitada. – Continuou o arcanjo Miguel. O necromante notou que do rosto de Penélope brotou um leve sorriso de satisfação e de arrogância. – Ela o protegerá em tua jornada e o levará ao submundo. Boa sorte!
Uma forte luz inundou o ambiente e quando ela se esvaneceu, o arcanjo Miguel havia sumido e só sobraram os três na câmera, sob a leve luz emitida por Penélope.
– Vamos? – Perguntou o anjinho com sua voz fina e arrastada, típica de uma caipira.
Fora da caverna, os três se preparavam para a aventura. O necromante e o clérigo foram buscar provisões, enquanto Penélope ficou observando curiosa os dois, com um sorriso dúbio no rosto angelical. O necromante, pensativo, se perguntava como “aquilo” poderia lhe ajudar. Talvez fosse mais um fardo a ser carregado. Resolveu, em seu íntimo, ficar afastado do seu anjo da guarda.
Por outro lado, São Paulo estava muito curioso. Recalcitrante, o beato queria fazer milhares de perguntas, em especial, sobre a maldição do livro e da situação em que se encontrava os exércitos celestiais diante da iminente guerra. Comentou com o necromante sobre esta vontade e, questionado pelo necromante por que não fazia, o clérigo respondeu que havia mistérios que a Humanidade não precisaria conhecer. O necromante, no entanto, percebeu pelo poder da empatia que tinha ao olhar as janelas da alma alheia que o religioso temia, na verdade, perder o encanto. Notou nos olhos de São Paulo o temor de que aquelas dúvidas que surgiam em seu âmago, e que Penélope poderia responder, não eram, na verdade, mistérios, mas sim perguntas perfeitamente respondíveis de forma lógica.
Todavia, olhando o rostinho, ao mesmo tempo puro e malicioso do anjo, o necromante tinha dúvidas sobre se ela saberia responder alguma coisa. Ela parecia tão inocente e frágil… seria uma piada do arcanjo Miguel? A única resposta que o clérigo obtivera foi a respeito da milenar questão sobre o sexo dos anjos.
Enquanto recolhia amoras em meio à mata, sendo observado atentamente por Penélope, o necromante foi surpreendido pelo ataque sorrateiro de uma pantera negra. Por sorte, Lúcifer, que ficara mais ágil desde o último ataque de um animal selvagem, conseguiu se desviar do ataque. Penélope gritou, bateu asas e voou, o que deixou perplexo o herói.
“Esse é meu anjo da guarda?”, perguntou-se decepcionado.
Logo que se virou para contra-atacar a fera, percebeu que ela estava gravemente ferida. Hesitou, não queria matar o bichano, mas teria que fazê-lo, pois em estado de necessidade. Uma luz esverdeada surgiu de sua mão. Era intensa. Tinha impressão de que o Grimório, guardado dentro de uma bolsa pendurada junto ao ombro, fazia a luz emitida mais poderosa. Seria morte certa para a pantera. Entretanto, ela não atacou e não recuou, caiu exausta no chão. Aos poucos, o bichano foi tomando nova forma: tratava-se de um ser humano. Logo apareceu São Paulo correndo assustado com o braço direito estendido em direção ao Grimório, como se quisesse protegê-lo. Chegando perto, notou que aquela mutação nada mais era do que:
– Um druida. – Afirmou o beato.
Ao cabo da transformação, apareceu um homem de estatura mediana, com aspectos que lembravam um pouco o de um elfo com o rosto atarracado. Estava seriamente ferido no braço no qual se notava grandes manchas de sangue e de um material escuro que era familiar ao necromante, embora ele não conseguisse identificá-lo de imediato.
– Você estava com ele! – Disse o druida nervoso ao necromante. – Onde ele está? – Continuou com tom ameaçador. – Onde ele está?
O necromante estava perplexo. De quem ele estava falando? Por que sangrava? E o que eram aquelas manchas negras na sua pele e roupas?
– Saiam daqui! – Gritou o Druida. – Vocês estão matando a floresta, malditos!
São Paulo se adiantou:
– Calma, viemos em paz!
– Eu vi você. – Apontou para o necromante. – Você estava com aquele maldito que fez isso comigo. – Mostrou os ferimentos e as grandes manchas negras em seu corpo e os traços de negrume em seu rosto.
O necromante começou a pensar. Tentava se recordar daquela pessoa que o acusava, mas tinha certeza de que nunca a havia visto. Passou então a pensar em quem seria a pessoa a que o druida se referia. Então lembrou: O’ Cruz! Sim, só podia ser ele. Lembrou-se dos ferimentos de Fobos após ser atingido pelas armas de O’ Cruz. Antes de entrar na caverna se lembrou de que O’ Cruz estava prestes a atacar um oponente que o necromante desconhecia. Tudo havia ficado muito claro. Como explicar toda a situação para o druida ferido gravemente a sua frente?
São Paulo, percebendo a situação, adiantou-se e disse:
– Eu curarei você, amigo. – Sentou-se no chão e começou a rezar em voz alta, invocando seu poder de cura, embora a oração fosse dispensável. Imediatamente, o druida sentiu seu corpo formigar. Assustado e prestes a atacar, foi contido pelo necromante que pediu que esperasse e que confiasse no santo homem.
O druida, naquele momento, não confiava em ninguém. Sempre adotou uma conduta neutra nas guerras humanas que viu rondarem as florestas. Jamais tomou partido de qualquer religião, pois, em seu íntimo, ainda que de forma não articulada, sabia que qualquer resolução de desinteligência deveria começar excluindo as pessoas que diziam saber mais do que podiam saber, e todos os religiosos diziam saber mais do que podiam saber. O druida também não se envolvia em querelas de Estados e não fazia distinção entre homens bons ou maus, entre anjos e demônios. Seu único compromisso era com a floresta na qual estava totalmente integrado, mantendo uma espécie de relação simbiótica com ela. Sem o habitat, o druida morreria, e sem este, a floresta seria invadida e derrubada por agricultores, pecuaristas e garimpeiros. Os últimos dias para o druida haviam sido tormentosos. Em todos os cantos das florestas ocorreram batalhas atrozes e cruéis entre a guarda celestial e grupos de bestas. Tais batalhas tingiram os rios de sangue e consumiram inúmeras árvores que tombaram ou arderam em chamas até se tornarem pedaços carbonizados de madeira sem vida. Em seus quinhentos e tantos anos de vida, jamais vira tamanha destruição.
Seus ferimentos não decorriam apenas das bombas de O’ Cruz, mas também da destruição pela qual sua floresta passou. Ele, um druida, não pôde fazer nada. Sentia-se impotente e frustrado. Mesmo contra aquelas duas pessoas que estavam na sua frente, sabia que nada poderia fazer depois de ter falhado em seu primeiro ataque felino. Por dentro se sentia copioso, mas por fora, porque orgulhoso, tentava se mostrar forte, como se fosse um cristão sendo impelido a questionar a própria fé com distanciamento emocional e análise crítica. Todavia, não tinha escolha, teria que confiar, pelo menos naquele momento, nos homens que lhe estendiam a mão, embora soubesse, de algum modo, que eles tinham ligação direta com tudo o que havia acontecido à sua floresta.
Com a “reza” de São Paulo, que estava envolto em uma aura branca, o druida se sentiu fraco e anestesiado, logo caiu no sono.
– Ele ficará bem. – Disse São Paulo.
– Onde está aquela pirralha? – Perguntou Lúcifer olhando para os lados. – PENÉLOPE, PENÉLOPE! – Gritou o necromante com vergonha alheia.
O anjinho feminino surgiu do alto de uma árvore, ainda visivelmente assustado, batendo suas asinhas. Desceu vagarosamente até seus companheiros. Viu o corpo estendido do druida e se escondeu atrás de Lúcifer.
– Quem é ele, Trevinhas?
– Trevinhas?! – Riu admirado São Paulo.
– Trevinhas?! – Repetiu o necromante visivelmente irritado. – Vá recolher provisões para nós! – Gritou. Estava cansado, com fome, correndo risco de vida e acabara de ver que não tinha um anjo da guarda de verdade.
Penélope, contrariada e assustada, saiu rapidamente para cumprir seu dever.
– O Grimório? Está tudo bem com ele, né? – Perguntou São Paulo.
O necromante hesitou, pois achou estranha a pergunta repentina, mas respondeu que sim. Aquela inescondível preocupação do clérigo com o Grimório começava a lhe incomodar. O que podia ser? O clérigo havia esquecido a idolatria pela Bíblia? O necromante sabia que qualquer livro, até uma teogonia ou uma nova teogonia, poderia ser objeto de fé, bastando transformá-lo em um texto com sucessivas frases curtas e simples, mas o clérigo mal o leu. Não era normal aquela obsessão.
Após trabalharem o dia inteiro, à noite, enquanto Penélope dormia, pois fadigada de labutar, coisa que parecia nunca ter feito, o druida acordou revigorado. Seu primeiro ímpeto foi atacar os dois homens distraídos com suas funções… e assim o fez. Arbustos agarraram os pés do necromante e o puxaram para o ar; inúmeros esquilos e outros animais atacaram imediatamente São Paulo.
– Ei, ei, solte-me!! – Gritou o necromante.
A gritaria foi tamanha que acordou Penélope que, aterrorizada, começou a chorar. Gritava para que toda aquela violência parasse. O druida, ainda consumido pela raiva, transformou-se na pantera negra de outrora, agora forte e ágil, e se aproximou dela. Os gritos do anjo aumentaram e ficaram mais agudos. O necromante, de ponta cabeça, esqueceu a dor e a sua situação e olhou perplexo para a cena. Conforme a pantera se aproximava de Penélope, as lágrimas e a sensação de desespero que ela transmitia se ampliavam. Bem próximo ao alvo, o animal, paulatinamente, diminuiu a agressividade. Parecia estar se comovendo. Aquele ser era inofensivo… Seu andar de sinuoso passou a cauteloso, quase cessando marcha. Sua boca, até então mostrando os gigantescos e afiados dentes caninos, fechou-se. Diante do anjo, parou e o fitou. Voltou a ser o druida, o que fez Penélope parar de chorar, embora o horror de seu rosto continuasse evidente.
Ele olhou com desprezo impotente para o anjinho e partiu em direção ao necromante:
– Quem é você? O que fizeram com a minha floresta?! – Vociferou.
– Espere! – Gritou São Paulo ainda com muitos pequenos animais o atacando. – Posso explicar tudo. Livre-me de seus animais.
O druida, então, estalou os dedos e os animais deixaram sua vítima para se juntar aos pés do senhor da floresta. O necromante caiu no chão, quase quebrando o pescoço, e derrubou o Grimório de sua bolsa.
– Cuidado! – Gritou visivelmente alterado o homem santo.
Assustado, o necromante, ao se recompor rapidamente, não obstante a dor da queda, guardou, contrariado, o livro em sua bolsa. Aquele velho se preocupava com o livro mais do que com ele. Olhou cauteloso para o druida e foi em direção à Penélope. Queria ver se estava tudo bem com ela. Ao verificar que não havia se ferido, perguntou ironicamente para a entidade celestial:
– É desse jeito que você vai me proteger, chorando e berrando, hein anjinho da guarda? – E a abraçou.
Então São Paulo começou a explicar para o druida:
– A razão de tudo isso é que Lúcifer acordou. Os seres celestiais tentaram impedir que ele voltasse para a Terra, mas não conseguiram. Uma nova guerra está para acontecer. Precisamos levar este livro maldito para o Lago de Fogo, no inferno, e destruí-lo para enfraquecer os poderes do mal.
– Esses anjos destruíram toda a minha floresta! – Respondeu o druida irritado. – Chegaram há alguns dias e abriram clareiras, mataram milhares de árvores e colocaram grandes exércitos aqui. Minha casa, minha vida, está um caos! Depois chegaram batalhões de demônios por todos os lados e batalhas explodiram por todos os cantos. Eu não pude fazer nada! – Reclamou visivelmente indignado, estando reticente de que os anjos compunham o lado do bem.
– O livro que trancafiava Lúcifer estava depositado naquela caverna em que entramos. Os anjos queriam proteger o livro. Não tiveram culpa.
A raiva do druida era grande, mas a imagem e atitudes de São Paulo e do anjinho amenizavam seu ímpeto destrutivo. Pareciam ser bondosos e a história contada por São Paulo parecia coerente. Não mataria inocentes. Aquele senhor havia salvado sua vida e o anjinho o olhava com pavor, como se pedisse clemência. Nem mesmo o necromante fez menção de atacá-lo, destinando um comportamento paternal ao anjo. Sentiu-se um vilão. Como não queria parecer um druida intolerante, decidiu, em seu íntimo, mostrar as causas de sua aflição e do seu comportamento agressivo e desconfiado. Então disse:
– Amanhã, pela manhã, estejam prontos. Mostrarei uma coisinha para vocês. – Uma lágrima rolou de seus olhos.
– O quê? – Perguntou São Paulo tenso.
– Amanhã pela manhã quero ter respostas, do contrário vocês todos morrerão. – Asseverou sem muita convicção, quase resignado.
O druida deu as costas a São Paulo e sumiu em meio à mata fechada.
“O que ele quer mostrar?” Essa pergunta não saia da mente do necromante e do santo. Será ele confiável? Por prudência, os dois resolveram fazer uma vigia noturna. O primeiro que ficou acordado por metade da noite foi São Paulo, pois Penélope dormira no colo do necromante e porque o religioso estava acostumado a intermináveis vigílias.
Amanhece.
Acompanhado de um leopardo, o druida apareceu com os primeiros raios da manhã. Imponente e sério ordenou com um gesto que todos o seguissem. Cerca de duas horas se passaram. Penélope já reclamava do cansaço e do estado do seu cabelo. Queria voltar para o Céu. O druida, por outro lado, mantinha-se em silêncio. Era um silêncio perturbador. O necromante e São Paulo não tinham coragem de quebrá-lo a não ser para mandar Penélope, que vinha atrás de todos, calar-se. Subiram uma colina repleta de árvores verdes por meio de uma trilha quase imperceptível. A mata era extremamente fechada, porém, conforme o topo se aproximava, o necromante e seus companheiros percebiam que as árvores diminuíam em quantidade. Muitas estavam caídas e era evidente que foram derrubadas há pouco tempo. Com o céu já visível notaram estreitas cortinas de fumaça subindo a centenas de metros de altura e se dissipando nas altas camadas da atmosfera. Chegando ao topo, o druida se virou e com o braço indicou a paisagem. O movimento se assemelhava ao movimento típico de quem mostra uma grande obra de arte. Os olhos do necromante se arregalaram e seu coração começou a pulsar mais rápido. Jamais viu algo tão aterrador como aquilo. Seu estômago se embrulhou, sentindo vontade de vomitar. O que viu foi um vale devastado. Milhares de árvores derrubadas e chamuscadas se estendiam por todo o seu campo de visão. Sobre as árvores derrubadas e carbonizadas, milhares de estacas se levantavam e sobre elas milhares de corpos jaziam inertes. Todos empalados. Eram anjos mortos em batalha. Mesmo aos pés do necromante, a poucos metros, já se notava o sangue azul espalhado pelo solo e dezenas de partes de corpos mutilados por todos os lados, inclusive pequenos braços e pernas. Membros de… pequenos anjos. O necromante estava para vomitar quando ouviu a voz de Penélope terminando de subir a colina. Reclamava das bolhas no pé, querendo voar um pouco, o que fora proibido por Lúcifer, que temia que algum demônio a visse e os localizasse. O herói olhou assustado para São Paulo e correu em direção ao pequeno anjo. Abraçou Penélope. Não queria que ela visse aquela cena: milhares de anjos cruelmente mortos, com claros sinais de tortura, e, o pior de tudo, anjinhos como Penélope mutilados.
Ao pé da colina.
– Nossa busca acaba aqui. Isso é loucura! – Gritou o necromante com São Paulo.
– Você está nervoso, pense bem. Tudo faz parte do mistério de Deus. O arcanjo Miguel ordenou que nós levássemos o livro maldito ao Inferno e o destruíssemos. Até nos deu um anjo da guarda. – Ponderou o clérigo que, como todo devoto, cuja fé não podia ser questionada, acreditava que quando coisas boas aconteciam deus era bom e quando coisas ruins aconteciam deus era misterioso. Esse tipo de pensamento oriundo de pessoas inteligentes como São Paulo sempre foi considerado ofensivo pelo necromante e por pessoas racionais.
– Ela é “meu” anjo da guarda! – Apontando para Penélope que estava entretida com o Leopardo. – Não “nosso” como você quis dizer. E não temos mais nada para fazer aqui. Eu voltarei para Satânia e a levarei para alguma Igreja. Adeus!
– Você vai desobedecer a Miguel? E o Grimório? Precisamos ajudar as forças do bem. – Insistiu sem convicção o padre.
– Tome. Leve o Grimório você. Você só se preocupa com ele. Cumpra a maldita missão do “seu” arcanjo. – O necromante estendeu-lhe o livro.
– Eu não posso. Você sabe disso.
– Então eu o levarei comigo e esconderei em algum lugar.
Essa frase deixou o clérigo inquieto. Seu ar de fraqueza e compreensão havia sumido. Parecia estar sofrendo uma batalha interna contra ele próprio, como se o mal tentasse tomar conta dele. Então, finalmente, São Paulo conseguiu dizer:
– E Esmeralda?
Após contemplar a passageira mudança de comportamento de São Paulo, e pensar se aquilo era normal, o necromante voltou à carga:
– Você acha mesmo que é possível salvá-la?! Você viu aquilo lá atrás? – Berrou, gesticulando enraivecido.
– Quem é Esmeralda? – Perguntou Penélope, com sua voz fininha e auspiciosa, vindo em direção aos dois, acompanhada do leopardo.
– Ninguém! – Perdeu a paciência o necromante. – Nós vamos embora. Vamos sair dessa floresta, agora! – O druida, que observava sentado em uma pedra, assentiu. – Você dará um jeito de voltar ao Céu ou então ficará em uma igreja até que um dos seus amigos reluzentes venha te buscar.
– Por que você está bravo comigo? – Os olhos dela marejaram. – O “papa” disse que você cuidaria de mim.
– “Papa”?! – Balbuciou o necromante. São Paulo e Lúcifer ficaram estupefatos.
CONTINUA…
Farei o lançamento do meu livro A Nova Teogonia na Bienal do Livro, no dia 01/09/16, às 19:30, no estande da Scortecci.
A Nova Teogonia tem na Livraria Cultura também!
O segundo volume está pronto e será lançado na mesma data!
