Após a saída tensa dos seguidores de Hades, o clima no templo de Zeus e no Olimpo era o pior possível. O templo estava arruinado. Deuses, deusas e ninfas aos prantos, e todos preocupados, ainda sentido os reflexos do poder de Hades, que compelia suas vítimas a sentirem medo, pavor e a perderem a esperança. Perséfone estava gravemente ferida. Zeus e Deméter furiosos. Amaldiçoavam o irmão recém banido. Apolo estava pensativo e analisava com preocupação o ferimento da deusa da primavera. Poseidon sério, nada comentava. Ares era o único que havia gostado do que ocorrera, e embora tentasse esconder isso, não conseguia. Antes que também fosse fulminado por Zeus, foi se juntar aos filhos Fobos e Deimos para comemorar a desgraça alheia em outro cômodo. Atena, bom Atena, foi atrás de quem havia provocado toda essa discórdia. Saiu pela mesma janela de onde a maçã havia sido lançada poucos minutos atrás e seguiu uma criatura que voava indiferente a algumas centenas de metro à sua frente, encoberta pela noite e pelas pesadas nuvens de chuva. Tal ser estava tranquilo até perceber que havia alguém atrás dele, voando em alta velocidade e pronto para a batalha, teve o desgosto de notar que esse alguém era Atena. Medo! A criatura tentou fugir, mas em segundos foi alcançada pela poderosa deusa, cujo poder rivalizava com o de Apolo e do próprio Zeus. Sentiu um forte tranco nas costas e caiu por centenas de metros até dar de cara no chão. Após o baque e do rápido apagar das luzes da alma perturbada, Éris, a deusa da discórdia, com o rosto deformado, ensanguentado e com fortes dores nas costas, acordou e, ao levantar a cabeça, viu diante de si Atena, cuja aura dourada contrastada com a chuva incessante, com o tempo nebuloso e com a noite infinita criava uma bela visão. Destacava-se na imagem o corpo sarado de Atena, quase tão perfeito quanto o de Ártemis – a deusa atlética das florestas e caçadas se gabava da absoluta ausência de estrias e celulites em seu corpanzil, nem com uma lupa era possível achar qualquer imperfeição. E essa foi a última visão que Éris viu por muitos dias, pois o golpe que Atena desferiu na face de Éris foi deveras forte. A deusa da discórdia fora a nocaute.
No templo de Zeus, alheio a este acerto de contas, que para Atena, em particular, envolvia não apenas os acontecimentos de minutos atrás, mas também os que levaram à guerra de Troia e o inicio de suas desavenças com Hera e Afrodite, Zeus ainda vociferava e rogava pragas contra o irmão, mas logo Hera voltou ao recinto e pediu silêncio ao deus furioso.
Apolo e Deméter estavam debruçados sobre Perséfone. A filha de Zeus estava mal.
A ferida que a espada de Hades lhe provocara, apesar de superficial, causou severos danos na filha de Deméter. Com efeito, uma ferida feita por Hades não poderia ser curada tão somente por métodos convencionais. Nem mesmo Apolo, que também era o deus da cura, estava habilitado a debelar aquela chaga feita pelo tio sombrio. O máximo que podia fazer era conter a necrose, amainar a dor e os efeitos deletérios que derivariam do ferimento.
Apolo olhou para os presentes e disse:
- Uma ferida feita pela espada de Hades só pode ser curada por ele próprio. – disse grave, o orgulho do deus estava ferido. Apolo se sentia impotente naquela situação. Ele era o deus da cura, mas não tinha poder suficiente para restabelecer a saúde da irmã unilateral.
Zeus ficou com mais raiva do irmão, após a declaração de Apolo. Buscaria Hades e o faria desfazer seu malefício.
- Você sabe que ele não o obedecerá, não é mesmo? – disse Poseidon para Zeus. – Entre nós não há subordinação. – Arrematou convicto o deus dos mares.
- Se ele não me obedecer, ele irá para o Tártaro, para junto do pai. – esbravejou ameaçadoramente Zeus, cuja intenção também era a de dar um “aviso” para Poseidon e para todos os presentes que a cúspide daquele panteão não toleraria rebeldia.
Poseidon não gostou dessa ameaça.
Neste interregno e aos poucos, alguns convidados voltavam ao local da desavença entre dois dos “pilares do Olimpo”. O burburinho era irritante e tendia a aumentar.
Apolo, por seu turno, pensou em Asclépio, um filho seu que Zeus havia fulminado milênios atrás. Sentiu raiva do pai. Asclépio era genial e conseguira a proeza de ressuscitar os mortos. Com sua genialidade, certamente poderia ajudar Perséfone. Era o deus da medicina. Fez menção de jogar na cara do pai a morte do filho, assassinato que jamais engolira, mas houve por bem deixar para lá. Zeus ainda estava furioso. Não seria de bom alvitre tocar naquele assunto novamente, pelo menos por enquanto, afinal de contas, Apolo estava predestinado a ser o dono do Olimpo, não daria ensejo a instabilidades desnecessárias.
Quando da morte de Asclépio, Apolo, furioso, imaturo e não tão poderoso como hoje, rebelou-se contra Zeus e matou os ciclopes, que eram aliados do pai e forjadores dos raios do deus supremo do Olimpo. Foi punido. Punição esta que nunca digeriu. Com efeito, as relações entre Zeus e Apolo sempre foram difíceis. Zeus punira várias vezes Apolo ao longo da história. Além disso o perfil de liderança e a personalidade forte e expansiva do pai sempre ofuscavam o brilho do deus Sol. A relação com o sexo oposto também era algo que incomodava Apolo: Zeus era um mulherengo e conquistador nato. Já o deus Sol, apesar de se ver rodeado por mulheres, ninfas e deusas vinte quatro horas por dia, todos os dias, e apesar de amá-las, era um romântico frustrado. Sua arte tocava o coração das mulheres, mas as palavras melífluas às afastava. Apolo tratava com seriedade e sobriedade os seres femininos como se fossem idealizados e perfeitos, mas isso jamais as agradou. Elas o achavam chato e excêntrico. Muitos galanteios, muita educação, muito formalismo e pouca pegação. Para mulheres, ninfas e deusas, isso era brochante! Apolo nunca percebeu, mas as tratava como seres caricatos e previsíveis, cuja conquista pressupunha a obediência a uma série de protocolos e de frases feitas. Como se fosse um rito. E por mais que tivesse sido avisado disso e por mais exemplos que o pai, os tios e os irmãos lhe davam, possuía a convicção que o amor platônico à mulher era melhor do que pegá-las como se fossem objetos ou como se não fossem seres frágeis. Por milênios Apolo viu o pai, Poseidon e Ares, figuras que visavam unicamente o sexo da mulher, se darem bem com elas; por milênios Apolo se aconselhou com Afrodite, que mais debochava dele do que aconselhava. Não pedia ajuda a Eros, pois dizia que o amor deveria ser natural – e não forjado por setas de um punheteiro – e… porque odiava o fedelho. A única criatura que o compreendia e o acolhia era a irmã bilateral: Ártemis.
Enfim, Apolo jamais gostara do pai e tinha em mente substituí-lo, na primeira oportunidade. Mas, naquela hora todos esses pensamentos revanchistas e carregados de rancor deveriam ser deixados de lado. O problema imediato era cuidar de Perséfone, que definhava. Até porque, caso não tratasse da enferma, irrogar-lhe-iam a pecha de indiferente e incompetente, quiça inútil. O deus da cura pensou em uma divindade que talvez conseguisse ajudar sua meia irmã, mas… não. Melhor não. Não seria legal para a sua própria imagem e para a imagem do Olimpo. Ele deveria dar um jeito, pensar em algo diferente, buscar a ajuda de alguém que ainda não havia pensado. Entretanto…
- Ísis pode ajudar! – entrou no salão Hermes, que, obviamente, conhecia as repercussões negativas que aquele nome traria ao ambiente. Todavia, também tinha ciência que Perséfone naquela situação deplorável iria sofrer demais e perder toda sua graça e beleza com o passar inexorável do tempo. Talvez murchasse, ficando parecida com uma moira.
Zeus parou de andar de um lado para o outro e fuzilou Hermes com o olhar. Deixou o ambiente. Foi voar pelos céus. Disse que precisava espairecer, mas, no íntimo, não queria avalizar aquela proposta, embora soubesse que era a única solução possível. Hades estava fora de cogitação, pelo menos por hora. Apolo, contrariado, perguntou para Hermes:
- As humilhações de hoje já não bastam? Você quer que o Olimpo peça ajuda para Ísis? Você não sabe que os egípcios são traiçoeiros? Será uma demonstração de fraqueza do Olimpo se formos buscar ajuda…
- Partiremos amanhã! – disse Deméter resoluta, cujas atenções estavam voltadas para a filha. Não se deu conta de que cortara a fala de Apolo e também para ela pouco importava naquele momento rivalidades milenares toscas e mesquinhas. Deméter apenas queria o bem da filha amada, pensar de outra forma seria estultice.
Hermes ficou aliviado, pois não queria ouvir as palavras de intolerância de Apolo contra os deuses egípcios. Hermes era do bem. Sim. Os egípcios não eram lá muito confiáveis e também eram esquisitões. Constituíam o panteão mais agressivo e avesso a preponderância do Olimpo. De mais a mais, Zeus não gostava deles, mas, ainda assim, buscava-se – pelo menos era esse o discurso que predominava no Olimpo – a convivência pacífica entre ambas legiões divinas.
Os gregos, em geral, não queriam aproximação, apenas a tolerância e a máxima distância possível dos egípcios. Obviamente havia aqueles que queriam destruir, massacrar, dizimar e exterminar os rivais do deserto, leia-se Apolo e Ares – se bem que neste último caso a opinião do deus em questão era irrelevante, pois, sabidamente, ele queria matar todo mundo.
O líder do Olimpo costurou uma aliança imponente com os deuses nórdicos, de forma a elidir qualquer forma de movimentação dos egípcios tendente a enfraquecer o predomínio do Olimpo. Assim, não precisaria matá-los e ter os desgastes naturais de uma contenda militar. Esta era a paz que tinha em mente.
Gregos e egípcios não se batiam, desde a época em que os primeiros se afugentaram no Egito com medo de Tifão, posteriormente abatido em uma árdua batalha por Zeus.
A fuga em massa dos deuses gregos, naquela época, foi vista pelos egípcios como uma invasão, como um ato de covardia – Hórus chamou Apolo de covarde, com todas as letras na cara dele -, e como egoísmo dos gregos, pois eles atrairiam Tifão para aquelas bandas. Naquela época, os egípcios já tinham muitos problemas para manter a serpente Apófis sob controle e para controlar a situação política da região – havia uma disputa muito grande pelo poder entre Hórus e Seth da qual os gregos se eximiram de participar, mesmo havendo reiterados pedidos de intervenção de Ísis, Tot e Hórus.
Apolo, após lançar alguns unguentos sob Perséfone, cumprindo seu mister, deixou a sala contrariado. Sabia que ele seria compelido a viajar para o Egito – aquele lugar que sempre julgara subdesenvolvido e povoado por deuses de terceira categoria. Não havia ninguém que poderia ir em seu lugar. Ele era o “médico” do Olimpo e o mais indicado para acompanhar Perséfone em caso de recaída.
CONTINUA
